É impressionante o amadorismo de Valdemar Costa Neto nesta ação do PL que colocou em dúvida o funcionamento das urnas eletrônicas. O presidente do partido de Jair Bolsonaro é um profissional da política. Deveria ter experiência suficiente para evitar uma encrenca como essa, com riscos maiores do que as possibilidades de lucro político. E o resultado acabou ultrapassando as previsões mais pessimistas: o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, rejeitou a ação do PL que pedia anulação de votos e aplicou multa milionária ao partido. A coligação de Bolsonaro foi condenada por litigância de má-fé e teve o fundo partidário bloqueado enquanto não for paga a multa de R$ 22,9 milhões.
Um ponto importante é que esse bloqueio atinge as três siglas da coligação, que além do PL incluem o Republicanos e o PP, partido poderoso do centrão. Costa Neto, portanto, se queima com os parceiros, na sua suposta habilidade como político de bastidores. A multa milionária traz um fato interessante na política brasileira, inédito e até mesmo cômico, com políticos do centrão tendo que se acertar pela primeira vez na história não na divisão de lucros, mas como pagar o custo.
É um baque para a, digamos, credibilidade do cacique. Francamente, esse é o momento em que a gente lembra que o sujeito não tem currículo, mas capivara. A barbeiragem atual explica em parte a mancada de Costa Neto no passado, quando ele foi condenado pelo STF a quase oito anos de cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. o cacique do PL ficou preso de 2013 até receber o perdão de pena do ministro Luís Roberto Barroso, em 2016, afinal ele era um aliado de Lula e não um "mané".
Alçado forçosamente ao papel de liderança de uma escancarada manipulação para estimular os movimentos de seguidores de Bolsonaro que estão nas ruas desde a divulgação do resultado do segundo turno, o presidente do PP demonstrava uma clara insegurança na defesa da ação que colocava sob suspeita a eleição de Lula. Via-se que suava frio no papel de porta-voz da treta. Na entrevista coletiva sobre a ação dava a impressão de que os dirigentes do partido já tinham a informação de que tinham ido longe demais.
Até mesmo Carlos Rocha, engenheiro do “Instituto Voto Legal”, responsável pelo relatório que sustentou a ação do partido, não demonstrava firmeza sobre o documento apresentado, parecendo indicar na sua forma de falar que já sabia que havia entrado numa fria. As alegações, feitas sempre com o reforço de que eram questionamentos “técnicos”, podiam ser facilmente esclarecidas por especialistas, sem deixar dúvida sobre a falta de fundamentação da ação.
Mas independente disso, a consequência do pedido do PL ao TSE seria a anulação da eleição de 2022, inclusive no primeiro turno. Nenhum dos articuladores do plano genial analisou as consequências da tentativa de atingir um objetivo como este? Parece que não, mas já estão sabendo da proporção do estrago.
Do ponto de vista jurídico, era amadora a tese do PL, que pretendia se ater ao segundo turno na sua suspeição sobre o funcionamento das urnas. Prevalecendo a ação, os resultados das eleições para senador, deputado e governador também teriam que ser anulados. Para mim, não é difícil saber onde estavam com a cabeça Costa Neto e sua turma, incluindo o suposto chefe da jogada, Jair Bolsonaro, quando montaram esta equação com apenas dois sujeitos, Lula e Bolsonaro. Sendo vitoriosa a ação, vejam só, Bolsonaro ficaria desobrigado legalmente de passar a faixa presidencial para o petista.
Essa encrenca tem origem parecida com outras complicações bolsonaristas que começam sempre como se fossem jogadas geniais. O problema é que a sacada genial não obedece a nenhuma organização e segue sem controle pelas redes sociais ou nas ruas. Aí estão os bolsonaristas na frente dos quartéis, esperando o golpe que Bolsonaro prometeu logo que subiu ao poder pelo voto. Esta falta de relação causal entre discurso e ação complica muito qualquer projeto político, ainda mais quando as metas são tão radicais. Até hoje deve ter em algum lugar um cabo e um soldado, à espera daquela ordem para irem os dois fechar o STF.
Essa dificuldade na relação entre as metas e os recursos para alcançá-las foi certamente a razão principal de Bolsonaro não ter sido eleito pela segunda vez. Vejam o esforço de Lula para vencer, tendo que acusar o adversário de genocida, fascista, até mesmo de pedófilo e mesmo assim só obtendo sucesso no finalzinho da disputa, com a ajuda dos tiros na Polícia Federal e a entrada em cena da deputada amiga da família Bolsonaro correndo armada atrás de um sujeito pelos Jardins, em São Paulo. Carla Zambelli só não vai ganhar um ministério porque o PT, como todos sabem, é um partido ingrato. Bolsonaro perdeu não para o Lula, mas por esta falta de controle sobre sua língua, as próprias ações e de seus aliados.
Um ponto simbólico na manipulação que deu nesta trapalhada do discurso eleitoral negacionista é o acesso ao código fonte — que inclusive é gritado nas manifestações bolsonaristas, que assisti pessoalmente. Entre rezas e pedidos de SOS aos militares, os militantes de camisa amarela entoam em coro o pedido do acesso. Ora, este direito é regulamentado, com a apresentação do código fonte aos partidos e instituições, em período determinado pelo TSE. Até as Forças Armadas estiveram lá, em agosto deste ano, conferindo o código fonte.
Esta ação no TSE veio da necessidade após a derrota eleitoral, de terem de criar algo forte para esquentar as mobilizações bolsonaristas, procurando reforçar o negacionismo eleitoral, que na minha visão é um erro estratégico quando bate no funcionamento das urnas eletrônicas. O enfoque é tão tolo que acaba anulando questões muito mais empolgantes no debate político, deixando para trás, por exemplo, a falta de neutralidade do TSE durante a campanha, quando chegou até a censurar veículos de comunicação, com determinações favoráveis ao candidato do PT. Parece que o pessoal da direita não fez o dever de casa, como se costuma dizer, nesta jogada política internacional da pós-verdade. A manipulação das cabeças fica muito complicada quando vai de encontro a fatos técnicos.
Outro cuidado importante é o de não oficializar os objetos de manipulação. Daí o discurso sempre ambíguo, fazendo as piores acusações aos outros sem dar jamais a certeza do que se está falando. Foi essa a toada nesses anos todos, vindo da mentirada de Boris Johnson, que chegou ao cargo de primeiro-ministro do Reino Unido em 2019 com a manipulação do Brexit, passando depois para Donald Trump ainda antes de ser eleito — mas que vem de mais longe, tendo adquirido bastante força durante os anos difíceis da República de Weimar, na Alemanha, de 1929 até 1933, com o posterior desastre da ascensão de Adolf Hitler, que resultou na Segunda Guerra Mundial. No plano mundial, os comunistas também foram atores fundamentais nesta manipulação da linguagem, também nos embates em Weimar, mas especialmente depois dos anos 40, quando o comunismo passou a se alastrar internacionalmente pelas armas, apoiado no Ocidente pela propaganda disfarçada nas artes, na literatura e no estudo.
A manipulação do pós-verdade se impõe em grande parte dos casos sustentada apenas por questionamentos diversionistas, sem focar exatamente no ponto pretendido, na maioria das vezes com acusações baseadas apenas em dúvidas que buscam desmoralizar o adversário. É óbvio, gafanhotos direitistas, que não se deve protocolar juridicamente fato algum, muito menos com um juiz como Alexandre de Moraes, que há bastante tempo vem se concentrando exatamente no trabalho de desmontar esse tipo de coisa. E tem mais: como encontrar uma base política contra as urnas, exatamente quando a direita alcançou uma vitória assombrosa no Congresso Nacional?
O negacionismo eleitoral também já teve experiência prática de dois anos nos Estados Unidos, com um resultado altamente negativo para Donald Trump e a redenção eleitoral de um presidente impopular como Joe Biden, para quem se previa maus bocados este ano. No entanto, neste mês Biden colheu o melhor resultado em décadas de um presidente americano em disputa de meio de mandato, com Trump tendo que amargar um fiasco que dificulta sua candidatura a presidente. O que é que a o bolsonarismo precisa mais para cessar essa conversa fiada? Tem que ter a cabeça muito dura para não compreender que não é pela negação das urnas que a direita brasileira se fortalecerá como oposição, rumo às eleições municipais dentro de dois e depois para a eleição presidencial.
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Por José Pires