terça-feira, 30 de agosto de 2011

O bonde do Brasil

Quem não viu ainda o vídeo do bonde de Santa Teresa trafegando na contramão tem que dar uma espiada neste retrato do momento que estamos vivendo no Brasil, onde até o risco de vida motiva piadas, galhofa e, claro, muita irresponsabilidade. Nada mais é levado a sério por aqui? Parece que não.

A cena aconteceu poucos dias antes do acidente com o mesmo veículo, quando morreram cinco pessoas e 57 ficaram feridas. Dez desses feridos em estado grave.

Um defeito nos trilhos leva o condutor do bonde a uma solução impressionante. Ele conduz o bonde pela contramão durante quatro minutos. O vídeo todo tem quase nove minutos e vale a pena vê-lo inteiro. Depois de o bonde voltar aos trilhos certos, ouve-se os comentários do motorneiro sobre a precariedade do serviço de transporte.

O que se percebe nos diálogos é aquela condição tão próxima de todos nós da dificuldade de encontrar soluções práticas de qualidade, quando a atividade envolve responsabilidades coletivas. Fico imaginando se o motorneiro chegasse na oficina dizendo à chefia sobre a necessidade de melhor manutenção no bonde. Iria ser motivo de riso. É mais ou menos parecido com a situação do passageiro que exige um colete salva-vidas para viajar em um barco. Em várias partes do país, as opções são apenas duas: embarcar sem colete ou ficar em terra.

A sensação que o vídeo passa é de muita de tensão. É um trem-fantasma, com a diferença que neste caso os fantasmas são os da vida real, de um país que transita sem rumo certo. Mas o pessoal que vai no bonde pela contramão vê tudo com muito humor. É aquele espírito do brasileiro de não encarar com rigor nem o que merece um pouco mais de atenção, como é o caso de um bonde descendo uma ladeira na contramão.

E alguém que experimente reclamar nessa hora e se negar a seguir numa viagem louca como esta. Com certeza será tachado de ranheta, mal-humorado, de não ter a ginga própria do brasileiro. Qualquer pessoa que busca ter um pouco mais de seriedade na vida já passou por este tipo de situação.

A cena que peguei para ilustrar o texto é do momento em que um ônibus vindo no lado correto tem que desviar do bonde pela contramão. O vídeo pode ser visto aqui. Bem, nem precisa dizer o que poderia acontecer se algum chato sem ginga viesse pela mão certa lá atrás do bonde.

Com o desastre com o bonde que matou e feriu tanta gente está todo mundo falando o óbvio: da Copa do Mundo que vem por aí. Mas a questão pra mim nem é apenas esta, mas de serviços desse tipo oferecidos à população. Todo mundo sabe que o bonde de Santa Teresa é só a caricatura simbólica das falhas estruturais que sofremos em várias áreas e em todo o país. O bonde não é só de Santa Teresa. É o bonde do Brasil.

E não dá para acreditar que haverá mudança nesse tipo de comportamento. Para isso teríamos de encarar uma séria tranformação cultural no país para a qual poucos parecem estar dispostos. E como não se começou nada nesse sentido, só que há de certo é que mais desastres virão por aí.

Devem colocar um bonde novo nos trilhos da Santa Teresa, com certeza bem vistoso. Afinal, com um desastre desses não há outra coisa a fazer. Se Lula fosse o presidente poderia até comentar, bem do seu jeitão, que "há males que vem pra bem". Mas o novo será só na aparência: na essência da coisa, aquele espírito que movimenta o país estará sempre remendado com um arame velho e enferrujado, feito o freio do bonde como se descobriu quando já era tarde demais.

Escapar da tragédia cotidiano brasileira, só por sorte. É preciso estar sempre cada vez mais precavido, mas a verdade é que hoje em dia voltar pra casa com a saúde intacta é também uma questão de sorte.

Que estamos caminhando para um risco sério com esta Copa do Mundo, acho que poucos brasileiros têm dúvida. Podem até acusar-me de falta de ginga, mas acho tão arriscado entrar em um desses estádios feitos a toque-de-caixa quanto descer de bonde pela ladeira na contramão.
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POR José Pires

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