quinta-feira, 29 de maio de 2014

William Blake e a criação de seu mundo

Na imagem, um manuscrito de William Blake, artista que para mim é um dos mais completos, tanto em seus textos quanto nos desenhos admiráveis ou mesmo quando juntava os dois, seja ilustrando ou compondo páginas em que os textos fazem parte da ilustração. Gosto demais de seus desenhos, que são para mim estímulos vívidos de entrada numa percepção imaterial. Mas trouxe este manuscrito do grande, imenso poeta, para mostrar que nem na obra de um místico o texto brota naturalmente. Nada sai desse jeito em criação, ainda que seja impossível surgir arte sem a explosão interior que ninguém sabe como se processa.

Mas é claro que sem o domínio da linguagem não dá para extrair algo de qualidade desse movimento interior. É preciso muito trabalho, que é possível ver nas inúmeras correções e caminhos deste manuscrito de Blake. A escrita revela a "carpintaria" do poema. Este árduo trabalho de linguagem é exigido até de alguém como este homem dotado de uma chama interior que parece sempre mais acesa do que a maioria dos artistas. O manuscrito é do poema "O tigre", que felizmente tem várias traduções para o português. Escolhi a do poeta Alberto Marsicano e o professor John Milton, que acho muito boa e por isso publico abaixo.

Blake trabalhava demais, inclusive ilustrando textos dos outros, que era um modo de ganhar o pão. Seus contemporâneos (ele viveu de 1757 a 1827, na Inglaterra) não eram muito dispostos a comprar sua obra de impressionante qualidade. O grande crítico de arte E. H. Gombrich conta que Blake era tido como excessivamente excêntrico na sua época e muitos o viam como louco. Morreria de fome se não fossem uns poucos que acreditaram em sua arte. Ainda citando o mestre Gombrich, ele diz o seguinte: "Blake estava de tal modo envolto nas suas visões que se recusava a desenhar do natural e confiava inteiramente no seu olho interior".

Concordo plenamente. Talvez por isso, para atingir a compreensão do que Blake está dizendo é preciso ter algo mais além do conhecimento técnico. Blake não está interessado na representação exata — e aí voltamos às palavras de Gombrich: "o significado de cada figura de seus sonhos era para ele de uma importância tão grande que as questões de correção [no desenho] lhe pareciam irrelevante".

Daí a necessidade de ser feita uma travessia até o que Blake mostra de longe ao leitor, seja no desenho ou no texto, e não existe nas margens um navegador com sua barca (nem um Caronte) facilitando para a alma esta viagem. A passagem é solitária e requer um esforço que é parte da satisfação da chegada.
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Por José Pires


O Tigre

Tigre! Tigre! Luz brilhante
Nas florestas da noite,
Que olho ou mão imortal ousaria
Criar tua terrível simetria?

Em que céus ou abismos
Flamejou o fogo de teus olhos?
Sobre que asas ousou se alçar?
Que mão ousou esse fogo tomar?

E que ombro & que saber
Foram as fibras do teu coração torcer?
E o primeiro pulso de teu coração
Que pé ou terrível mão?

Que martelo, que corrente?
Que forno forjou tua mente?
Que bigorna? Que punho magistral
Captou teu terror mortal?

Quando os astros arrojam seus raios,
cobrindo de lágrimas os céus,
Sorriu ao sua obra contemplar?
Quem te criou o cordeiro foi criar?

Tigre! Tigre! Luz brilhante
Nas florestas da noite,
Que olho ou mão imortal ousaria
Criar tua terrível simetria?

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Tradução de Alberto Marsicano e John Milton

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