segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Os tiros que criaram um mito

O jornal espanhol El Mundo trouxe neste domingo uma excelente reportagem sobre a morte do guerrilheiro Che Guevara, em outubro de 1967. Guevara foi morto na Bolívia, depois de capturado pelo exército boliviano. O jornal localizou afinal o homem que matou o guerrilheiro. Ele é Mario Terán, cujo nome já era conhecido, mas que nunca havia dado as caras depois dos tiros que deram início a uma lenda. A reportagem assinada pelos jornalistas Ildefonso Olmedo e Juan José Toro dá aquela satisfação que infelizmente ficou no passado, de um jornalismo instigante, criativo, que resgata qualidades abandonadas nesses tempos em que é sempre muito raro encontrar algo que presta na imprensa.
 
A partir do encontro com o executor de Guevara, hoje com 72 anos e vivendo numa casinha muito simples em Santa Cruz de la Sierra, os jornalistas fazem um relato em que concentram fatos importantes em torno da morte do guerrilheiro que saíra de Cuba para fazer uma revolução na Bolívia. Eles não arrancam de Mario Terán a confirmação de que é ele o militar que deu os tiros fatais. Mas ficou até melhor assim. Eles envolvem o homem em fatos, contando sua trajetória pessoal desde a execução que deu a um simples sargento boliviano uma dimensão histórica. É um texto inspiradíssimo. E afinal o homem que ficou desaparecido durante décadas acaba fazendo sua confissão numa situação aparentemente banal.
Os repórteres levaram a única foto conhecida do sargento que matou Guevara. É uma imagem da época em que ele deus os tiros. No meio da conversa eles mostram a foto para Terán e perguntam se aquela pessoa é ele. E então ele confirma. É uma foto feita por Michèle Ray, jornalista do Paris Match. Na época da morte de Guevara a imagem correu o mundo, mas pelo jeito nunca havia chegado na casinha de Terán.
O capitão Gary Prado, que ficou famoso como o homem que prendeu o Che, foi quem aconselhou há muitos anos Terán a desaparecer, para evitar uma vingança. E em volta da morte do guerrilheiro existe um monte de histórias que são vistas como prova do azar que vitimou vários dos envolvidos. O próprio Prado, que hoje é general reformado e vive também em Santa Cruz de la Sierra, acabou numa cadeira de rodas depois de ter sido atingido na coluna vertebral por uma bala perdida, em 1981. Algumas pessoas foram mortas em ações de vingança, outras sofreram estranhos acidentes. O presidente Barrientos, que deu a ordem de execução, morreu quando caiu o helicóptero em que viajava. É claro que persiste até hoje a suspeita de ter sido um atentado. Honorato Rojas, o camponês que levou os militares até os guerrilheiros e por isso ganhou uma fazenda, acabou sendo morto com vários tiros na cabeça depois de ter sua propriedade invadida anos depois. O superior imediato do próprio Terán morreu decapitado em um grave acidente de trânsito. Roberto Quintanilla, militar boliviano que havia inclusive proposto que cortassem a cabeça do guerilheiro, foi morto a tiros por uma mulher quando era cônsul da Bolívia em Hamburgo. No bolso do cadáver ela deixou um bilhete: “Victoria o muerte!”.
Enfim, não faltavam motivos para Terán esconder-se durante tanto tempo, mesmo não tendo sido tanta a sua importância nos combates e captura de Guevara. Ele nem seria mencionado hoje em dia se não tivesse dado os tiros fatais. A ordem da execução veio de cima, da capital La Paz, em nome do presidente René Barrientos. A decretação da morte do guerrilheiro chegou em código; “Saluden a papá”.
A aventura de Guevara, na Bolívia, foi sua derradeira ação equivocada. O mito criado depois de sua morte ajudou a encobrir os tremendos erros do guerrilheiro, que do ponto de vista militar cometeu tantos absurdos que só por desconhecimento ou má-fé alguém pode admirá-lo como guerreiro. Tirando Cuba, ele e Fidel Castro não acertaram uma. Um plano exemplar dos dois é Che Guevara chegando em 1965 ao Congo para comandar uma revolução, porém sem sequer saber nenhum idioma local. A desastrada luta armada no Brasil também veio de Cuba, onde grupos foram treinados e receberam instrução ideológica. E quanto à Bolívia, uma história escrita pelo grande escritor cubano Guillermo Cabrera Infante sintetiza bem o tamanho do erro. Em 1967, quando soube qual era a localização geográfica em que Guevara fora surpreendido, o escritor Mário Vargas Llosa, que havia morado muitos anos na Bolívia, disse o seguinte: “Não há alternativa, ou ele se deixa capturar ou morre. Está sem saída. O que ele fez foi suicídio”.
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POR José Pires

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