quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Charlie Hebdo e a morte do professor Samuel Paty alertam sobre o inimigo que ameaça a democracia por dentro

O presidente turco Recep Tayyip Erdogan está irritado com o jornal francês Charlie Hebdo por causa de uma charge publicada na capa da mais que polêmica publicação de humor. Por motivos que certamente a redação do jornal dispensaria, o Charlie Hebdo tornou-se um símbolo da liberdade de expressão, algo que adquiriu um sentido ainda mais forte para os franceses depois do assassinato do professor Samuel Paty, morto por um terrorista islâmico. Paty foi decapitado depois de ter sido vítima de uma campanha pelas redes sociais, movida por islâmicos acolhidos pela França, indignados porque o professor havia mostrado as controvertidas caricaturas de Maomé publicadas anos atrás pelo Charlie Hebdo. O heróico professor fez isso em uma aula dedicada exatamente à liberdade de expressão.

Erdogan é um autocrata que tem o plano de não sair mais do poder na Turquia e está envolvido em uma tentativa de islamizar o país. Recentemente ele transformou em mesquita basílica de Santa Sofia, cujo prédio desde 1935 era usado como museu. Erdogan usa a religião como justificativa para estender o domínio absoluto sobre a população e para desviar a atenção da sua responsabilidade pessoal no estabelecimento de uma ditadura. A charge é sobre a hipocrisia de Erdogan e evidentemente serve como crítica a todo tipo de autocrata, especialmente de regimes sustentados por fanatismo religioso. Sua raiva deve ter sido ainda maior porque o desenho é assinado por uma mulher — a jovem cartunista Alice. As mulheres, como se sabe, recebem um tratamento de ser inferior em países onde esta religião tem influência sobre o sistema de governo.

Durante os funerais de Samuel Paty, o presidente Emmanuel Macron afirmou que “não renunciaremos às caricaturas”, uma fala admirável, ainda mais porque sabe-se muito bem que o Charlie Hebdo não poupa ninguém e nenhuma religião, tendo publicado muitas caricaturas sobre o próprio Macron tão agressivas quanto esta de Erdogan na capa desta semana. A fala de Macron: "Nós continuaremos, professor. Nós defenderemos a liberdade que você ensinava tão bem e nós levaremos a laicidade. Nós não renunciaremos às caricaturas e aos desenhos".

O conceito essencial é o da liberdade de expressão, historicamente de um valor especial para a França, que tem seu povo não só na origem do direito de se expressar como na sua defesa através dos séculos, como acontece até agora quando a liberdade corre riscos no mundo todo. Outro conceito essencial é o da laicidade, que hipocritamente os muçulmanos procuram demonizar, procurando esconder que na verdade a laicidade é uma proteção a todas as religiões, inclusive para impedir que uma religião se aposse do Estado e passe a perseguir todas as outras crenças, que é o que o islamismo vem fazendo em vários países.

No caso da França e de vários países europeus, há um aproveitamento das próprias liberdades desses países para uma gradativa ocupação das instituições, com o evidente objetivo de um domínio pleno, em um processo desenvolvido com a paciência milenar de uma religião autoritária. O massacre na redação do Charlie Hebdo em 2015, quando terroristas islâmicos mataram 12 mortos pessoas e deixaram 11 feridos graves, serviu para apontar que este fundamentalismo é fortalecido de dentro das comunidades islâmicas, inclusive entre refugiados acolhidos generosamente pela França.

A ironia é que são pessoas protegidas pelo Estado francês de violências que sofriam em seus países de origem, praticadas na maioria das vezes entre os próprios islâmicos, que se matam há séculos por causa de divergências históricas dentro da própria religião. A morte do bravo professor francês mostrou a necessidade do governo francês criar precauções contra o uso da democracia para o aniquilamento progressivo dela própria. O jovem terrorista que matou Paty era de origem chechena e sofreu a influência de islâmicos que não se apresentam como fundamentalistas, mas não aceitam se submeter às leis e costumes dos países onde são acolhidos. Isso serve inclusive ao domínio opressivo e degradante sobre as mulheres nas comunidades islâmicas.

Ao que parece os franceses acordaram ao fato de que levam para dentro de casa graves problemas, importando conflitos e costumes intolerantes que podem arrasar com a qualidade da vida na França. Nesta semana, por exemplo, foram expulsos cinco bósnios, membros da família de uma adolescente muçulmana contra a qual praticaram crueldades em nome da religião, castigando a jovem porque ela namorava um rapaz sérvio. Seria interessante acompanhar como os valentes vão se dar com a vida na Bósnia, região de massacres recentes por causa de religião.

Medidas mais amplas estão em andamento contra fundamentalistas que usam associações como escudo para suas atividades. Alguns desses organismos chegam a receber dinheiro público, como um tal de Coletivo contra a Islamofobia na França (CCIF). Gostaram desse “coletivo”? Ganha uma camiseta do Che Guevara grafitado pelo Banksy quem adivinhar qual é a ideologia do grupo solidário. Mas a própria esquerda francesa vem repensando sua complacência excessiva com o islamismo, agora que a coisa definitivamente está muito perigosa. Outra associação que o governo pretende fechar é chamada Baraka City.

As ações cruéis recentes dos fanáticos muçulmanos mostraram a necessidade de medidas rigorosas contra o terror e suas redes de sustentação dentro do país. É óbvio que este será um assunto importante nas próximas eleições, do mesmo modo que a questão da imigração ressurgirá com a compreensão mais acentuada sobre a necessidade da administração de riscos muito graves. A realidade mostrou aos franceses que a demolição da liberdade não vem apenas do fundamentalismo organizado do exterior, podendo nascer entre vítimas de violência em outras países, que não aceitam se adequar aos costumes e leis do lugar onde tem o acolhimento.

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POR‌ ‌José‌ ‌Pires‌



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