De vez em quando fico aqui imaginando o que certas pessoas de que gostei bastante fariam se tivessem vivido para desfrutar da internet. Isso dá uma lista legal: Tarso de Castro, Fortuna, João Antonio, Glauber Rocha, Paulo Francis, Hilda Hilst, o Telmo Martino (Nossa! O Telmo Martino iria arrasar com aquela notas curtas), enfim, tanta gente legal, mesmo para quem segue o padrão boboca atual de classificar com planilhas de supostas diferenças políticas.
Não falei do Henfil porque sei, tenho certeza, garanto até que ele iria estar aprontando horrores na internet, com seu traço rápido e sua capacidade para criar de forma absolutamente livre.
Conheci o Tuneba na década de 80 em São Paulo, quando ele se mudou para um apartamento grande em Higienópolis, meteu a prancheta numa sala em que dava pra andar de bicicleta e passou a trabalhar lá com um monte de moleques cartunistas encarapitados às suas costas vendo o ídolo desenhar. Fazia uma página genial na revista Isto É, que logo depois deu problema com a censura interna da revista, e publicava em vários lugares, inclusive em O Pasquim, que ainda existia. Em São Paulo fez uma peça de sucesso com a Ruth Escobar, um longa-metragem, o programa “TV Homem” na Globo. O cara era fogo.
Não me perguntem a razão do apelido Tuneba, pois temos crianças e garotas no Facebook. Mas o caso é que o Henfil tinha esse hábito de ir para uma cidade e se fixar lá com a intenção de mudar os costumes locais. O Tuneba era fogo, estava em São Paulo com a pretensão de mexer com a cidade. E não teve tempo para provar que faria mesmo: morreu logo depois.
Henfil era daquele tipo de gente generosa que hoje está em falta, especialmente na imprensa. O que há? É o meio ambiente? Sei lá porque, mas esse tipo está em extinção. Podia-se chegar na sua casa, abrir a geladeira, se servir, essas coisas. “O Nilson deixou aí essas claras de ovo; o safado só come a gema; vamos ter que fazer suspiro”, ele dizia. O Nilson era o cartunista mineiro — bem jovem, mas já bom de traço — que morava com ele.
Nessa época o gentil Glauco também morava com o Henfil como agregado. Éramos bem moleques na época, alguns, como eu e o Glauco, recém-chegados do interior e jacus de tudo. Me lembro que o Glauco me contou que tinha vergonha até de dar a descarga depois de fazer o número dois. O jacu aqui também teria, é claro. Mas não disse pra ele e me fiz de superior. “Ora, que bobagem, meu amigo...”
Mas em São Paulo Henfil meteu-se no que na época eu já via como uma roubada. Com seu caráter generoso e ligado o tempo todo nos direitos civis, o cartunista passou a chefiar um grupo de cartunistas para executar trabalhos para sindicatos. A ação era ligada ao sindicato mais forte do país, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, cujo dirigente era o falecido Joaquinzão. O sindicato era pelego da ditadura militar, palavra que caiu em desuso agora que os pelegos são maioria e inclusive tem governo próprio.
Mas o Joaquinzão tinha bom faro e já sentia o cheiro da decomposição da ditadura. Daí a abertura para esse trabalho que o Henfil encarou na maior animação, como fazia em tudo em que entrava. Bem no início fiz parte do grupo, no qual estavam Glauco, Angeli, o cartunista mineiro Nilson, e o Laerte, na época um cuecão do Partidão. Hoje o Laerte anda com essa estranhice de se vestir de mulher.
Saí desse grupo de cartunistas, porque ainda era novo mas não era besta: vi logo que aquela relação com a pelegada não era pra mim e que isso ia fazer mal para a liberdade do nosso trabalho, além de nos comprometer com política de péssima qualidade. Tive uma conversa em particular com o Henfil sobre isso. Ele entendeu, apesar de não concordar comigo, mas tudo ficou bem. Sem rusgas.
Depois nos perdemos de vista, até a notícia de que ele tinha a AIDS contraída numa das transfusões de sangue que ele fazia regularmente por ser hemofílico, quando até pensei em visitá-lo quando certa vez passei por São Paulo, ou ainda morava lá, tenho que conferir... mas o fato é que — covardão — não tive a coragem.
E me arrependi de não ter tido pelo menos um último papo e receber o tapão carinhoso que ele gostava de dar nas costas dos amigos. Gostava dele, uma dessas pessoas que passaram em nossa vida e que até faz a gente chorar de vez em quando, quando a lembrança vem. Chorar escondido, né Glauco?
É... o Henfil iria ser um arraso na internet!
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POR José Pires
Não falei do Henfil porque sei, tenho certeza, garanto até que ele iria estar aprontando horrores na internet, com seu traço rápido e sua capacidade para criar de forma absolutamente livre.
Conheci o Tuneba na década de 80 em São Paulo, quando ele se mudou para um apartamento grande em Higienópolis, meteu a prancheta numa sala em que dava pra andar de bicicleta e passou a trabalhar lá com um monte de moleques cartunistas encarapitados às suas costas vendo o ídolo desenhar. Fazia uma página genial na revista Isto É, que logo depois deu problema com a censura interna da revista, e publicava em vários lugares, inclusive em O Pasquim, que ainda existia. Em São Paulo fez uma peça de sucesso com a Ruth Escobar, um longa-metragem, o programa “TV Homem” na Globo. O cara era fogo.
Não me perguntem a razão do apelido Tuneba, pois temos crianças e garotas no Facebook. Mas o caso é que o Henfil tinha esse hábito de ir para uma cidade e se fixar lá com a intenção de mudar os costumes locais. O Tuneba era fogo, estava em São Paulo com a pretensão de mexer com a cidade. E não teve tempo para provar que faria mesmo: morreu logo depois.
Henfil era daquele tipo de gente generosa que hoje está em falta, especialmente na imprensa. O que há? É o meio ambiente? Sei lá porque, mas esse tipo está em extinção. Podia-se chegar na sua casa, abrir a geladeira, se servir, essas coisas. “O Nilson deixou aí essas claras de ovo; o safado só come a gema; vamos ter que fazer suspiro”, ele dizia. O Nilson era o cartunista mineiro — bem jovem, mas já bom de traço — que morava com ele.
Nessa época o gentil Glauco também morava com o Henfil como agregado. Éramos bem moleques na época, alguns, como eu e o Glauco, recém-chegados do interior e jacus de tudo. Me lembro que o Glauco me contou que tinha vergonha até de dar a descarga depois de fazer o número dois. O jacu aqui também teria, é claro. Mas não disse pra ele e me fiz de superior. “Ora, que bobagem, meu amigo...”
Mas em São Paulo Henfil meteu-se no que na época eu já via como uma roubada. Com seu caráter generoso e ligado o tempo todo nos direitos civis, o cartunista passou a chefiar um grupo de cartunistas para executar trabalhos para sindicatos. A ação era ligada ao sindicato mais forte do país, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, cujo dirigente era o falecido Joaquinzão. O sindicato era pelego da ditadura militar, palavra que caiu em desuso agora que os pelegos são maioria e inclusive tem governo próprio.
Mas o Joaquinzão tinha bom faro e já sentia o cheiro da decomposição da ditadura. Daí a abertura para esse trabalho que o Henfil encarou na maior animação, como fazia em tudo em que entrava. Bem no início fiz parte do grupo, no qual estavam Glauco, Angeli, o cartunista mineiro Nilson, e o Laerte, na época um cuecão do Partidão. Hoje o Laerte anda com essa estranhice de se vestir de mulher.
Saí desse grupo de cartunistas, porque ainda era novo mas não era besta: vi logo que aquela relação com a pelegada não era pra mim e que isso ia fazer mal para a liberdade do nosso trabalho, além de nos comprometer com política de péssima qualidade. Tive uma conversa em particular com o Henfil sobre isso. Ele entendeu, apesar de não concordar comigo, mas tudo ficou bem. Sem rusgas.
Depois nos perdemos de vista, até a notícia de que ele tinha a AIDS contraída numa das transfusões de sangue que ele fazia regularmente por ser hemofílico, quando até pensei em visitá-lo quando certa vez passei por São Paulo, ou ainda morava lá, tenho que conferir... mas o fato é que — covardão — não tive a coragem.
E me arrependi de não ter tido pelo menos um último papo e receber o tapão carinhoso que ele gostava de dar nas costas dos amigos. Gostava dele, uma dessas pessoas que passaram em nossa vida e que até faz a gente chorar de vez em quando, quando a lembrança vem. Chorar escondido, né Glauco?
É... o Henfil iria ser um arraso na internet!
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POR José Pires
Belo blog, ja favoritei.
ResponderExcluirStela