quinta-feira, 31 de março de 2011

País sem memória e com santos em excesso

O ex-vice-presidente José Alencar vai ser cremado hoje. Acompanhei esses dias de pranto, até porque o assunto está em todo lugar. Pela cobertura da imprensa dá a impressão de que morreu um santo que foi também um grande estadista.

Não reconheço esse José Alencar. Estive aqui nos momentos mais importantes da sua vida política, ele não é um personagem da História antiga, daí meu estranhamento com o que vejo. Até chargistas mandaram o homem pro Céu. Como diz a moçada, menos, colegas, menos... Este manjado recurso de caricaturar político no céu não foi válido nem com aquele outro mineiro, o Tancredo Neves. E mesmo Tancredo Neves tendo um papel de alta relevância na história brasileira.

Não tenho religião, mas não dispenso as simbologias, afinal o que somos sem elas, não é mesmo? Alencar é um milionário. Seu ar de songamonga sempre fez as pessoas esquecerem isso. Então, antes de colocar Alencar no Céu nossos chargistas teriam a obrigação de fazer um camelo passar por uma agulha.

Uma leitura do que foi escrito nesses três dias pode, do mesmo modo, fazer um distraído pensar que perdemos também um grande estadista. Dizem que o brasileiro tem memória fraca. Eu não acho isso. O que desgraça a vida do brasileiro é que aqui as lembranças servem apenas à oportunidade do momento.

Cheguei até a ler um artigo que falava do papel de José Alencar no fechamento do acordo feito em 2002 entre o PT e o PL, partido pelo qual ele era senador. Neste texto sua ação foi definida como "uma habilidade de político mineiro". É um bom argumento para a defesa dos réus no processo do mensalão, já que na reunião decisiva que selou o acordo Waldemar Costa Neto, presidente do PL, disse que seu partido recebeu um bom dinheiro para entrar na coligação que acabou elegendo Lula presidente. A elogiada "habilidade" de Alencar foi num dos lances iniciais do mensalão.

A reunião foi em um apartamento, com Lula e José Alencar presentes. Depois se espalhou a história de que os dois estavam num quarto, enquanto na sala Costa e José Dirceu fechavam a transação. Mas esta versão de que Alencar e Lula não participaram diretamente do negócio é de quem estava lá, todos implicados no esquema do mensalão.

A propósito, entre as carpideiras, um dos mais comovidos era o deputado cassado José Dirceu, que disse que Alencar estava "mais à esquerda do que muita gente do próprio PT" e que ele "era uma grande alma".

A história de José Alencar até ser vice de Lula não tem absolutamente nada que o destaque na vida política brasileira. Até ser vice de Lula, seu perfil é o de um político do baixo clero. Sua eleição para o Senado em 1998 foi em decorrência de uma campanha milionária e não dá para extrair nada de relevante de seu mandato. Antes, em 1994 pelo PMDB, perdeu a eleição para governador, quando teve uma votação ínfima, cerca de 600 mil votos, ficando com 10% da votação.

Só com a vitória de Lula os brasileiros perceberam que Alencar existia. No papel de vice também não exerceu de fato nenhuma posição determinante. O que houve foi aquela conhecida lamentação sobre os juros altos, porém sem nenhum aprofundamento sobre o efeito do modelo econômico petista sobre a indústria, a agricultura e o desenvolvimento de qualquer tecnologia ou infra-estrutura.

Sempre suspeitei que o comportamento de Alencar nesta ladainha dos juros foi uma jogada ensaiada, feita para manter esta crítica sobre os juros no âmbito do próprio governo e numa voz sem um real peso político nos rumos da economia.

Parecia até que a companheirada se reunia nos momentos de crise — "A imprensa está pegando demais no nosso pé, companheiros!" — e alguém decretava: "Manda o Zé Alencar dar umas entrevistas com aquele papo sobre os juros altos.

O fato é que seu papo sobre os juros nunca teve conseqüência alguma. Já em outros assuntos ele jamais tocou. A questão da ética, por exemplo, nunca recebeu qualquer observação feita por Alencar. Sobre esse tema ele atravessou os oito anos de mandato de Lula de boca calada. E isso sendo o vice-presidente do "governo mais corrupto da nossa história", segundo palavras de seu colega de governo Mangabeira Unger e com a comprovação de um vasto rol de denúncias, inclusive um inquérito da Procuradoria-Geral da República que está no STF com a denúncia de 40 réus, inclusive algumas das pessoas que estavam com ele naquele apartamento em que foi selada sua entrada como vice na chapa presidencial do PT.

Ah, mas o José Alencar foi muito humano. Pois é... Na opinião do José Dirceu, ele foi "uma grande alma", apesar de que um epitáfio escrito por alguém como o ex-capitão do Lula é mesmo pra acabar.

Este personagem encarnado por Alencar na política já é bastante manjado. Funcionou bem na carreira dele, não posso discordar disso, mas na sua vida pessoal ele próprio se encarregou de desmontar até esta característica que dava a impressão de um respeito humano que o diferenciaria da maioria dos políticos.

Foi na ação de paternidade movida por Rosemary de Moraes, que diz ser sua filha. Alencar teria tido esta filha, que acabou sendo criada apenas pela mãe, a enfermeira Francisca Nicolina de Morais. Durante toda a vida esta mulher nem procurou Alencar. Pouco tempo antes de morrer ela falou casualmente para a filha que Alencar era seu pai. Rosemary só soube disso aos 42 anos. Escrevi sobre isso aqui.

Com advogados bem pagos, Alencar conseguiu adiar qualquer decisão por mais de dez anos, protelando o caso de tal forma que o juiz José Antônio de Oliveira Cordeiro até acusou o então vice-presidente de litigância de má fé e qualificou suas atitudes como "desrespeitosas para com a Justiça".

Além de protelar o esclarecimento, Alencar foi grosseiro com Francisca Nicolina de Morais, a mãe da pessoa que afirma ser sua filha. Comentando o assunto em entrevista no programa do Jô Soares ele disse o seguinte: “Se fosse assim, todo mundo que foi à zona um dia pode ser pai. São milhões de casos de pessoas que foram à zona, só que grande parte desses casos não tenham sido objeto de interesse, nem político nem econômico”. Convém lembrar que Francisca morreu sem procurá-lo para que assumisse a paternidade.

A Justiça deu ganho de causa à Rosemary, porém os advogados de Alencar entraram com mais um recurso. Durante todo o andamento da ação, por mais de dez anos, ele se negou a fazer o exame de DNA, o que a lei entende como presunção de paternidade. Agora, com a morte de Alencar, poderia haver uma resposta definitiva com a determinação da Justiça de uma exumação para o exame de DNA. Mas, como eu escrevi no início, Alencar será cremado hoje. Foi o seu último pedido para a família.
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POR José Pires

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