Foi divulgado pelos organizadores do chamado “Festival Lula Livre” um vídeo com Gilberto Gil e Chico Buarque, no qual Gil dá uma explicação, bem do jeito dele, sobre o motivo da presença dos dois no evento. Depois eles cantam a música “Cálice”. Bem, “cantam” é modo de dizer. Chico Buarque nunca foi grande coisa como cantor, limitação que piorou com a idade. E ficou no passado o excelente cantor que foi Gil. Ele esteve muito doente e ainda teve um problema grave nas cordas vocais. O resultado musical é triste, assim como é muito triste ver dois grandes artistas na ocupação lamentável de servir de apoio a um salafrário que comandou um ciclo de governos que arrasou com o Brasil.
Gilberto Gil chegou a servir diretamente a Lula, como ministro da Cultura. Foi um cargo de encomenda, no uso de seu prestígio como artista para amaciar o atrito entre o governo petista e a classe artística. A política de cultura do governo petista foi planejada para desmobilizar a atuação crítica e tornar homogêneo um setor cuja função essencial é exatamente o de estimular diferenças. Com Gil e o sucessor indicado pelo próprio compositor foi estabelecido um conceito de cultura estatal, servindo exclusivamente aos apoiadores do projeto petista de poder.
O vídeo dele e de Chico Buarque do tal “Festival Lula Livre” é até engraçado, pela forma enrolada do baiano falar. Como todos sabem, é uma marca própria, que já deu muita piada. Mas o mais engraçado é que Gil não fala coisa com coisa e passa a palavra para Chico, que diz então que concorda com tudo que o colega disse. Aí é também um estilo próprio. Chico é o artista brasileiro mais ideológico da sua geração. Sempre procurou fazer a cabeça dos colegas para envolvê-los no apoio à ditadura de Fidel Castro em Cuba. No entanto, ele sempre foi do trabalho prático, negando-se sempre a responder sobre este assunto, mesmo quando parecia um funcionário da propaganda do regime cubano, criando pela via cultural uma movimentação de favorecimento ao regime comunista imposto a ilha.
Esse comprometimento político evidentemente cria a obrigação de Chico Buarque dar explicações sobre o que está acontecendo em Cuba, país atualmente arrasado por um modelo político e econômico. Ele também deveria tomar uma posição pública sobre o que ocorre na Venezuela e sobre os crimes de Daniel Ortega na Nicarágua, onde seu governo usa bandos paramilitares de esquerda para matar oposicionistas nas ruas. Até agora já são cerca de 400 mortes, incluindo uma brasileira. Mas ai de quem for perguntar a Chico sobre essas coisas. Ele costuma ficar indignado com esse tipo de questionamento e logo é defendido por aliados, na defesa do que parece até piada: o direito dele ficar calado. Este deve ser um “Cálice” do bem.
Mas alguém pode se perguntar o que é que o Chico tem a ver com a Venezuela ou com o governo criminoso de Ortega na Nicarágua. Ora, ambos fazem parte de um conjunto político do qual o compositor tomou parte ativamente, fazendo seu trabalhinho na área da cultura, enquanto a ditadura cubana prendia, torturava e matava. Durante os anos 70 e início dos 80, Chico trabalhou decididamente para melhorar a imagem do governo de Fidel Castro. Ele colaborava com a Casa de las Américas, instituição estatal que cuidava da diplomacia cultural. Atraindo o apoio de artistas e escritores, a ditadura cubana buscava evitar na América Latina a discussão crítica sobre seu governo, que inevitavelmente levantaria graves problemas com os direitos humanos e a liberdade de expressão.
Chico organizou caravanas de brasileiros para Cuba, numa contradição grotesca: artistas e escritores que reclamavam — com toda razão — da falta de liberdade no Brasil iam a Cuba apoiar o regime de Fidel Castro. E tem também o governo criminoso de Daniel Ortega, pois até com isso o caladão Chico Buarque tem laços antigos. Em razão do DNA castrista, o governo sandinista percorreu um percurso comum, de um movimento que derruba uma ditadura e depois no poder se desvirtua, passando a agir com autoritarismo. A trajetória se completou agora, com o corrupto e criminoso Ortega matando os nicaragüenses. Pois logo depois da derrubada do ditador direitista Anastasio Somoza, com os sandinistas já agindo como uma ditadura, Chico tentou atuar como um diplomata do governo sandinista.
Essa história se perderia se não tivesse contada por Carlos Drummond de Andrade em uma entrevista. Sim, ele mesmo, o grande Drummond, que numa noite de 1986 recebeu um telefonema de Chico Buarque. O poeta já estava indo dormir. Ele ficou espantado de ser procurado naquela hora da noite. "Meu Deus, aconteceu um drama, para o Chico me procurar", ele disse. Então ele recebeu o compositor, que chegou acompanhado de um homem da embaixada da Nicarágua. Os dois vinham reclamar de uma crônica de Drummond, publicada no Jornal do Brasil, que falava sobre o fechamento do jornal La Prensa pelo governo sandinista. Pediam que Drummond reconsiderasse as críticas feitas ao governo. O sandinismo já revelava seu caráter autoritário, na época já com Daniel Ortega no comando. Drummond conta que explicou aos dois que o que escrevia era resultado de sérias ponderações e botou Chico e o funcionário do governo nicaragüense para fora de sua casa.
Um dia desses Chico Buarque precisa ser questionado sobre essas antigas ligações tão firmes com o autoritarismo, para que seus fãs tenham o conhecimento histórico de sua real posição política, do apoio direto a um terrível regime comunista, até sua aliança atual com um salafrário que roubou o país e destruiu a economia brasileira. Mas se alguém for questionar o compositor, que se prepare para seus melindres. Ele não gosta de falar dessas coisas. Alegará que é intimidação política, vai se fazer de vítima, o conhecido mimimi da esquerda quando é cobrada por suas responsabilidades. E muita gente que cai nessa conversa sairá em sua defesa, alegando inclusive o respeito a intimidade de um homem que durante sua vida serviu de forma explícita a regimes autoritários na América Latina e reserva-se a um estranho direito de jamais prestar contas sobre as consequências do que faz.
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POR José Pires