Nos dias anteriores à eleição presidencial da Argentina, resolvida neste domingo com a vitória acachapante de Javier Milei sobre o peronista Sérgio Massa, rodou pela internet a charge que ilustra este post, do abraço das personagens de quadrinhos Mônica e Mafalda, com a evidente confiança de que Massa derrotaria Milei. É propaganda para o peronista, o que é lamentável mas não surpreende. A esquerda está sempre roubando alguma coisa, mas que sacanagem roubar a personagem do Quino.
A mensagem da charge tem como base apenas um anseio político baseado em desinformação sobre o segundo turno da eleição argentina. Mas para saber disso é preciso acompanhar, saber ler e pesquisar de modo dinâmico. E militante político sabe fazer algo parecido? Vejam o post da mulher do presidente, com o ineditismo de uma primeira-dama se metendo nos negócios internos de um país vizinho. Duvido que Janja saiba responder a umas poucas perguntas sobre o assunto. Mas petista é assim.
O clima na Argentina era de derrota do peronismo, mesmo com o esforço empreendido por Lula, evidentemente com o uso do cargo de presidente do Brasil. O petista fez viagens para a Argentina e recebeu o presidente Alberto Fernández em Brasília. Lula procurou também criar um clima de prestígio para o governo de Fernández, com a articulação da entrada da Argentina nos Brics. Até um empréstimo internacional foi cavado com a influência do governo brasileiro, para que Massa, no comando da economia, pudesse aliviar o falido cofre do governo peronista, passando para a população uma imagem de eficiência.
Lula mandou também uma equipe de marketing e conselheiros políticos para darem uma mão na campanha de Massa, levando em especial um know how — ou “expertise”, como se fala hoje em dia — em que o PT se aperfeiçoou durante década: do jogo sujo em eleições, da construção de mentiras sobre o adversário, do assassinato de reputação e do convencimento do eleitor de que as coisas podem ficar ainda mais piores do que os petistas conseguiram fazer.
O marketing dos petistas procurou estabelecer um clima de medo na Argentina. Ficou flagrante o dedaço de Lula na política argentina, uma interferência estrangeira que pode inclusive ter aumentado a rejeição eleitoral ao candidato peronista.
No Brasil houve um alvoroço da esquerda. A tigrada abusou das bravatas, aproveitando esses tempos em que a partir das redes sociais é possível ter a sensação de participação política, sem os riscos inerentes à atividade política no modo presencial. Nem é preciso fazer pesquisa para saber que o lugar de fala preferido da militância esquerdista é o celular ou o computador.
A participação dos valentes valeu-se de memes violentos e no compartilhamento de textos com ataques ferozes a Javier Milei, com as palavras de ordem já conhecidas, em que não faltou o xingamento especial de “fascista”, o que soa até como piada para classificar um oposicionista argentino, já que o peronismo tem na origem várias características em comum do fascismo. Ademais, Juan Domingos Perón tinha admiração pessoal por Benito Mussolini, seu contemporâneo.
Mas com a esquerda brasileira é assim: se é do outro lado é fascista. Uma condenação que obviamente é anulada de imediato quando o “fascista” adere ao governo Lula. Por esta leviandade política é que andaram repassando a charge em que a personagem Mafalda recebe um abraço da Mônica que lhe diz: “Mejorará”.
A charge esconde que a tragédia social e econômica da Argentina foi construída pelo grupo de Sérgio Massa, na mistura peronista e kirchnerista que destruiu o país. Se algo tem que “mejorar” é porque os argentinos foram envolvidos em um ciclo de governos populistas, trazendo dificuldades tão graves que, na melhor análise, não se via em nenhum dos candidatos meios de tornar o país pelo menos governável. Claro que não dava para confiar muito menos no peronista, que comandava a economia de um país em que a inflação está em 140% e tem vivendo abaixo da linha da pobreza 40% da população.
A charge não podia mesmo durar. Com a vitória de Milei sobre Massa com quase 12 pontos de diferença, a esquerda voltou ao vitimismo. Mas tem outro ponto importante nesta charge hipócrita, que permite ampliar a visão sobre a apropriação indevida da esquerda da obra do desenhista Quino, autor de Mafalda. É preciso também apontar a destruição cultural que essa leviandade da esquerda vai criando ao usar linguagens, simbologias ou qualquer outra expressão humana, sem ter nenhum cuidado com a verdade criativa, a origem real da obra e sua integridade. É uma manipulação política absolutamente improdutiva do ponto de vista da qualidade, que vai inclusive emburrecendo cada vez mais a militância.
Quino, que era argentino e viveu os mais variados processos da conturbada história política daquele país, sempre foi muito discreto sob o ponto de vista pessoal quanto às suas posições políticas. Era um socialista, conforme ele próprio disse umas poucas vezes. Mas tinha uma posição antiperonista muito firme. Mais que isso, não tinha nenhum respeito pelo kirchnerismo, conforme expressou sobre a própria Cristina Kirchner, atual vice-presidente e maior responsável pela trágica condição da Argentina. Foi a grande derrotada nesta eleição.
Numa matéria com o Quino no jornal Clarín, em setembro de 2016, chegaram a perguntar-lhe se Mafalda teria gostado de Cristina Kirchner, que era presidente na época. “Não, não, não, não...”, ele disse. A jornalista então perguntou o que Mafalda falaria para Cristina. “O que todo mundo já disse”, respondeu o desenhista, “que não seja prepotente, tão soberba”.
Esta era a visão de Quino sobre o peronismo e a sua derivação ainda mais cretina, o kirchnerismo. É claro que, de modo algum, ele teria alguma empatia com Milei. Mas não aceitaria o uso eleitoral da Mafalda, ainda mais com este conteúdo marqueteiro e tão banal, mesmo porque nunca permitiu ou fez ele próprio da sua personagem a mensageira de ideias partidárias diretas, que sempre se perdem no período curto de uma eleição. A proximidade direta com a política mata a arte.
Quino foi um grande artista, era inteligente e tinha conhecimento político. Sabia disso. Não iria gostar de ver seu trabalho metido numa jogada sórdida dessas. Para a Mafalda, seria como engolir uma sopa. Falando francamente, é uma grande mentira. Mas mesmo que em tese os propósitos fossem honestos, existe sempre a possibilidade da destruição do prestígio da obra criativa, com a quebra de compromisso que vem depois de uma eleição, que é praticamente uma regra entre os políticos.
. . . . . . . . . . . . . . .
Por José Pires