sábado, 29 de outubro de 2022

A disputa entre Jair Bolsonaro e Lula chega à hora do voto: o eleitor que se vire para decidir pelo menos ruim

Tenho acompanhado com certa vergonha alheia o desconforto de apoiadores de Lula e dos que pretendem dar seu voto ao candidato do PT — são duas coisas diferentes: tem os que votam por gosto e muitos votam em Lula apenas para derrotar Jair Bolsonaro. Essa observação acontece não só nas redes sociais, mas pode ser feita também nos programas de televisão retransmitidos, inclusive com recortes, nas redes sociais. É visível o constrangimento pelo apoio a um candidato que não reúne predicados para comandar o país numa complicada situação interna, agravada pelo que acontece em todo o mundo, quando os terráqueos dormem com uma má notícia, com o sono perturbado pelo medo de acordar com outra ainda pior.


Sempre é difícil votar por exclusão, mas a atitude é ainda mais delicada quando o candidato que, em tese, figuraria como um mal menor para o país, se envolve numa campanha de baixa qualidade política, caindo de cabeça num vale tudo com momentos até piores do que o adversário costuma fazer. Neste caso, a justificativa do voto fica mesmo apenas com a necessidade de se livrar de um estorvo, que tratando-se de Bolsonaro é um dos piores da nossa história. Só que é razoável que numa campanha se estabeleça um clima favorável à posterior governabilidade. Pois se for eleito, Lula terá muita dificuldade neste aspecto.


A campanha do candidato do PT chegou a tentar a criação de um clima de união suprapartidária, com a sociedade civil abraçando uma ampla frente democrática com o objetivo da reconstrução nacional. De fato, este seria um sentido político que poderia criar uma razoável harmonia no interesse não só do bem comum, mas como prevenção contra dias piores, que certamente virão. Mas foi só propaganda política, até porque é difícil levantar esta bandeira tendo à frente, no comando, exatamente um partido que no poder avacalhou a democracia no país.


Mas relaxem. Com esta classe política que resultou da suprema decadência brasileira, pelo menos não sofremos a angústia das expectativas inviáveis, porque a experiência garante que, dessa forma, não tem como esta coisa deixar de não dar certo. O Brasil vai se dar mal com um governo que vem sendo encaminhado com as barbaridades vistas nesta eleição, seja qual for o próximo presidente.


Vamos nos fixar, entretanto, nas possibilidades da eleição de Lula, que na terrível condição deste segundo turno, onde entramos de modo totalmente errado exatamente pela armação dos esquemas do desmonte das outras candidaturas que poderiam qualificar o primeiro turno. O PT teve que demolir essas candidaturas, articulando em bastidores obscuros a destruição, uma por uma, eliminando preferencialmente aquelas com tendência de crescimento.


O partido de Lula sempre fez essa armação de um cenário eleitoral favorável para no mínimo eleger uma bancada grande, que garanta a dinheirama do fundo eleitoral. Nessa eleição, a estratégia era vital. Um primeiro turno com candidatos competitivos certamente tiraria Lula do segundo turno. A prova disso é sua performance neste final, quando tem dificuldade até de debater com um sujeito de tão pouca qualificação em oratória e conteúdo, como Bolsonaro. A fragilidade de Lula é tanta que ele se abala até com um Padre Kelmon.


O debate da noite deste domingo, com dois homens despreparados para ser presidente de um país que vive uma crise próxima do insuperável, me fez lembrar do famoso debate entre Lula e Fernando Collor, em 1989, na primeira eleição presidencial depois da ditadura militar. A recuperação do comando civil no Brasil já começou errada. A partir daquele debate, o país viveu décadas revendo a fake news pioneira criada pelo PT, que afirma até hoje que a derrota petista se deu em razão da edição feita pela TV Globo nas cenas do debate, divulgadas depois no noticiário.


É mentira — ou fake news, como se diz hoje em dia. Assisti a este debate, ao vivo, a única forma que era possível naquela época. Lula diante de Collor. Foi uma decepção para muitos brasileiros, que viam na derrota de Collor uma chance melhor para o país se desenvolver e criar um ambiente social mais equilibrado — não era o meu caso: meu apoio ao PT foi só por exclusão. Eu vi o partido do Lula ser criado em São Paulo, conhecia bem a tigrada. E mesmo assim quebramos a cara. Anos depois, Lula disse que foi um erro o apoio ao PT contra Collor. Sua afirmação foi de que ele e seu partido não estavam mesmo preparados para governar o país.


Já então, os petistas agiam sem limites contra o setor democrático. Com setores militares ainda insatisfeitos com a abertura democrática, os petistas batiam forte em quem estava perto. Derrubaram a candidatura de Leonel Brizola, que por pouco deixou de ir ao segundo turno. Foi nesta derrubada de Brizola que a TV Globo ajudou Lula, mas desse assunto os petistas não gostam. Era mais fácil para Collor derrotar Lula, o que era minha opinião na época e de tantos outros democratas, no entanto, os petistas agiram como sempre ignorando o alerta. Lula teve 11.622.673 votos, para Brizola foram 11.168.228. E o candidato da estrela vermelha amarelou na frente da direita.


Décadas se passaram e no debate deste domingo foi possível assistir novamente Lula se rendendo à frente de um adversário desqualificado. A cúpula do PT já sabia dessa fragilidade, tanto é que desde o sufoco com o Padre Kelmon evitaram expor o candidato a um embate sério, com jornalistas ou adversários.


Neste domingo, o candidato do PT teve dificuldade de encarar Bolsonaro, fugia do olhar do candidato à reeleição, escapava para a tribuna no fundo do cenário do debate, logo que terminava de se queixar do cerco que o adversário lhe fazia, com acusações que podem até ser criticadas pelo tom, mas jamais por não serem verdadeiras.


É a mesma dificuldade de caráter que mostrou na frente de Collor, que para mim é um sentimento psicológico de quem sabe que é um usurpador. Em 1989, com a ajuda da TV Globo, atropelou Brizola, Mário Covas e outros políticos muito mais firmes. Foi ao segundo turno como um intruso, incapaz de vencer o embate.


Na eleição atual, articulou pesadamente para acabar com as outras candidaturas, servindo-se para isso — e sabe-se lá a que preço — de tucanos traidores de seu próprio partido. A imprensa também garantiu espaço para suas manobras traiçoeiras, com a parceria providencial de institutos de pesquisas. Já estava plenamente avisado que não daria conta do confronto com Bolsonaro, tanto é assim que teve que apelar para as maiores baixarias, até com desinformação brutal, como as acusações de que o adversário é “canibal” e “pedófilo”.


A derrubada de candidaturas no primeiro turno teve um papel importante na cristalização de um sentimento conservador, bem mais à direita, entre as massas. Este é o único movimento espontâneo atual entre a população brasileira. Este sentimento tem o emblema da bandeira nacional, estendida na frente de casas e de prédios durante todo o ano. No campo da esquerda, restou como suporte apenas o tradicional aparelhamento do estado, que inclui sindicatos e setores com poder no meio acadêmico, além da novidade do aparelhamento intenso nas áreas das artes, por meio de dinheiro público que banca burocratas da cultura e até mesmo nas assessorias culturais de empresas privadas.


Ao destruir candidaturas no primeiro turno, o PT ajudou muito na ampliação — e cristalização, como eu disse — desse sentimento conservador. A materialização desse fabuloso capital político está na tomada do Congresso Nacional por deputados e senadores à direita, eleitos com muitos votos. Parabéns, Lula e companheiros. O nome popular disso é tiro no pé. Candidatos mais equilibrados, políticos de centro ou mesmo de esquerda, muito mais capazes para a construção democrática, foram varridos para fora do debate político. Perderam feio nesta eleição, o que era óbvio que ocorreria quando seus partidos ficaram sem candidatura presidencial, essencial na relação eleitoral junto à população. O PL de Bolsonaro elegeu a maior bancada. A sigla emblemática do centro, o PSDB, traído pela cúpula partidária e pelo vice do Lula, virou um partido nanico e deve fechar.


Com a falta de apoio no Congresso e um vazio político estabelecido por uma candidatura sem propostas e que fez campanha pela negação do adversário e não pelas qualidades próprias do candidato, se Lula for eleito terá que governar pressionado pela direita, sem condições políticas de estabelecer um caminho de transição razoável entre estes quatro anos muito difíceis de Bolsonaro e a viabilização de um projeto de nação que contenha ao menos bom senso e equilíbrio.


Uma explicação interessante sobre este ponto delicado em que o Brasil foi colocado pode ser extraída de uma declaração de Simone Tebet, que abraçou Lula neste segundo turno com a sofreguidão de alguém que pode se afogar politicamente se não se encaixar no poder nos próximos quatro anos. Foi involuntária a conceituação sobre o nosso sufoco, como um ato falho.


Do alto de seus 4% de votos e com a língua como sempre embaralhando as sílabas, a senadora Tebet disse que pulou de “um penhasco político” ao apoiar Lula no segundo turno. Sim, foi isso mesmo que ela disse. Vejam na íntegra: “Eu sabia que seria a decisão mais importante e mais arriscada da minha vida política. Eu praticamente mergulhei num abismo, pulei de um penhasco político, mas o fiz por convicção“.


Mergulhar num abismo “por convicção” é muito interessante como tese política. Outra explicação que também serve para definir este momento crucial do nosso país pode ser extraída do pensamento do grande Millôr Fernandes, que me veio à cabeça quando li este devaneio desatinado da senadora. É um desenho do Millôr, de um homem que caiu do alto de um edifício e que durante a queda, ali pelo sexto andar, pensa o seguinte: “Até aqui, tudo bem”.


Este é o estado a que chegamos agora, na hora de votar em dois candidatos que a maioria dos brasileiros sabe que não têm capacidade de dar conta do enfrentamento duro que vem pela frente. A situação é muito grave, mas posso dizer que até aqui tudo bem.

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POR José Pires

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