domingo, 11 de junho de 2023

As engrenagens do destino político de Deltan Dallagnol e Arthur Lira

O Brasil vem vivendo uma séria instabilidade jurídica cercada de avisos de que deveria ser contida, sob o risco de tornar inviável qualquer forma de relação social, afetando até mesmo a economia do país, por causa da dificuldade do investidor, estrangeiro ou daqui mesmo, saber que raios pode acontecer no setor em que ele coloca seu dinheiro. No caso do investimento estrangeiro, cabe destacar, essa instabilidade é duplamente negativa: afasta o investimento produtivo, ao mesmo tempo que promete ganho fácil para quem se dispor ao uso da manipulação, da propina, dos arranjos que envolvem os que mandam na política e no meio jurídico.


Não faltam os avisos de que por este caminho não é possível a construção de um projeto nacional viável, mas parece que temos um país surdo ao alerta de perigo. Na semana que passou tivemos acontecimentos que simbolizam muito bem esta caminhada para o abismo, dois deles que se juntam no entranhamento que embola a vida nacional. Houve a cassação pelo TSE do mandato do deputado federal e ex-procurador Deltan Dallagnol e logo depois o STF decidiu, também por unanimidade, arquivar a denúncia de corrupção passiva contra o presidente da Câmara, Arthur Lira.


Tem muita gente que tem antipatia por Deltan Dallagnol, assim como existe hoje na opinião pública uma influência muito forte de mídia e propaganda contra a aplicação com rigor de leis contra a corrupção. Mas o que deve ser compreendido é que o que se faz contra Dallagnol nada tem a ver com defeitos dele próprio ou da Lava Jato. O que se busca nesses ataques é a destruição da consciência nacional que já ia se formando, da necessidade do estabelecimento da honestidade em todas as esferas e da punição de quem rouba ou comete outros crimes.


Uma observação atenta dos casos de Arthur Lira e de Deltan Dallagnol mostram que estamos em meio a um processo em andamento, com as engrenagens se acertando para que o Brasil se dê mal, muito mal. Essa corja quer cometer um crime perfeito. A armação que vem sendo construída para abrir as porteiras do liberou geral, com a impunidade garantida para corruptos, vem impondo também a intimidação de quem deseja um país livre de corruptos.


Os resultados estão sintonizados com um conjunto de ações, movidas muitas vezes por partes interessadas, sem o respeito sequer à lógica, como foi feito com o caso de Dallagnol. O TSE votou com unanimidade presumindo que algo poderia acontecer. Ora, se a lei desandar desse jeito, a instabilização será geral. Os tribunais avançam cada vez mais para leituras fora do processo, substituindo a materialidade pela imaginação. 


Na política este é um procedimento praticamente consagrado. A realidade fica por conta da narrativa que vai sendo construída, numa rede que entretece acontecimentos — eventuais ou articulados — anteriores e posteriores ao que se quer impor como uma verdade política ou jurídica. É curioso esta técnica de abre-e-fecha de gavetas, enquanto a realidade política vai mudando. Ou sendo mudada.


No dia 16 de maio Dallagnol teve o mandato cassado pelo TSE, com base na Lei da Ficha Limpa, para logo depois, em 6 de junho, o STF arquivar a denúncia contra o presidente da Câmara, Arthur Lira. O arquivamento que favoreceu Lira foi no mesmo dia em que a Câmara deu o reconhecimento oficial da cassação de Dallagnol. Coincidências acontecem.


A cassação de Dallagnol é absolutamente fora da legalidade. Na data de sua demissão do Ministério Público ele não respondia a nenhum processo administrativo-disciplinar (PAD). É falsa a alegação para a cassação. O que pesou foi a vontade de cassar o ex-procurador, substituindo a presunção de inocência pela certeza de que ações contra ele iriam certamente resultar em impedimento de que ele fosse candidato. Isso pode ser chamado de julgamento por premonição. As altas cortes decidem por adivinhação, não com o apoio de provas.


Sua eliminação da Câmara dos Deputados só pode ser vista como vingança por outras coisas, feitas como procurador da Lava Jato, em ataques de adversários por razões no mínimo subjetivas, nas narrativas fabricadas sem contato com a realidade. O interesse é político e ideológico. Ainda que num ato falho, o próprio Lula já havia definido muito bem essa atitude, durante encontro efusivo com Nicolás Maduro, quando deu o conselho para que ele crie uma “narrativa” para abafar as denúncias de tortura e assassinato de adversários que pesam contra o cruel ditador da Venezuela.


Ao menos nisso, Lula está certo. É mesmo uma questão de “construção de narrativas”, na sua interpretação muito pessoal do debate muito atual sobre a deformação que se faz dos fatos. No entanto, neste caso o chefão do PT aponta como positivo o que na verdade é altamente negativo. Ele vê como uma qualidade política a construção de discursos que manipulam os fatos. Bem, eu nunca tive dúvida de que Lula é um adorador de fake-news — o inesperado é esta confissão pública.


Desse modo, a destruição do mandato de Dallagnol se deu a partir de uma alegação jurídica que nada mais é que exercício de premonição, com o sepultamento de mais de 300 mil votos de eleitores paranaenses. A narrativa teve não só a interpretação posterior dos fatos. Antes houve a própria construção do cenário que justifica a condenação. Não é só uma questão de contar o que aconteceu, mas de elaborar o que vai ser narrado.


O caso da absolvição de Lira está em plano parecido ao da condenação de Dallagnol. As razões para prejudicar o ex-procurador foram se juntando com ares de casualidade. As ações contra Dallagnol,  que nunca chegaram a constituir um PAD, são normais a um procurador que contrariou interesses poderosos. Também não é preciso ser especialista da matéria jurídica para saber de certos passos para ir-se armando, passo a passo, supostas motivações de uma jogada mais alta em tapetões superiores. 


Claro que do mesmo modo que serve para condenar, a movimentação dessas engrenagens podem ir no sentido da absolvição. Não é preciso também ser “jurista” — algo que, a acreditar no que escreve-se na imprensa, parece que hoje em dia serve para identificar qualquer advogado — para saber como são articuladas essas peças. Basta derrubar a condenação na segunda instância, por exemplo, para dar início à subida ao poder de um político que ajude no desmonte de avanços que estavam levando corruptos poderosos para a cadeia.


É interessante o itinerário até o julgamento do STF que tirou da gaveta o processo contra Arthur Lira, para favorecê-lo. O caso é de um assessor parlamentar dele, preso em 2012, no aeroporto de Congonhas, tentando embarcar para Brasília com mais de 106 mil reais escondidos no corpo. Na época, Lira era um deputado desconhecido. A passagem de avião do assessor foi paga com o cartão do parlamentar. Quando foi pego pela Polícia Federal, o assessor afirmou que o dinheiro era de Lira.


A denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) só foi analisada em 2019. Já havia maioria formada na Primeira Turma do STF para torná-lo réu e claro que a defesa de Lira recorreu da decisão. Então, em 2020 o ministro Dias Toffoli suspendeu com um pedido de vista a análise do caso. Com tudo engavetado, ficou aberta a eleição posterior de Lira, como o novo presidente da Câmara dos Deputados para o biênio 2021-2022. A reeleição em fevereiro de 2023 também estava garantida legalmente. 


Providencialmente, o caso só saiu agora da gaveta. Mas espere aí: não havia a decisão de 2019  de torná-lo réu? Bem, houve uma mudança total do entendimento do caso, por causa de transformações criadas por outros julgamentos. Cabe lembrar que em novembro de 2019 Lula foi solto. Caiu a prisão em segunda instância. 


Subiram então aos palcos da da mídia e da internet, agora sem nenhum pudor de exibição pública, uma porção de defensores de uma amenizada geral na aplicação das leis. Houve uma campanha cerrada da esquerda comandada por Lula contra o instituto legal da delação. Outro ponto que deve ser lembrado é que foi em 2021 que o Centrão entrou com tudo no governo de Jair Bolsonaro. Engrenagens giravam, garantistas de desmandos, à esquerda e à direita.

 

Em abril deste ano, a própria PGR recuou e desistiu da acusação contra Lira. A defesa de Lira também pode nos ajudar a observar as engrenagens em andamento. Seus advogados alegaram que depois dele quase virar réu em 2019, casos semelhantes foram rejeitados e anulados pelo Judiciário. Outro argumento foi sobre a Lei Anticrime, que impede o recebimento da denúncia baseado unicamente nas declarações de um delator. Essa lei é de abril de 2021. Mesmo sem fazer juízo de valor, não há como não notar engrenagens se acertando.


O julgamento começou em 2019, mas havia sido paralisado pelo pedido de vista de Toffoli quando já existiam votos suficientes para abrir a ação penal. A maioria da Turma tinha seguido o voto do relator, ministro Marco Aurélio Mello, aposentado no ano passado.


Na semana que passou, cinco ministros votaram pela rejeição da denúncia: André Mendonça, Dias Toffoli, Luiz Fux, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Anteriormente, Moraes e Barroso haviam aceitado a denúncia, assim como o ministro Marco Aurélio, que foi o relator originário. André Mendonça entrou agora em seu lugar e votou diferente.


Essa é uma novidade interessante. O Tribunal tem um posicionamento consolidado de que o voto já lançado pelo ministro aposentado não pode ser renovado pelo ministro que o substituiu. Os togados resolveram mudar essa praxe, depois de uma questão de ordem do ministro Mendonça, que citou diretamente a manifestação da PGR pela rejeição da denúncia e “as inovações legislativas sobre a matéria”. 


Quem há de discordar da argumentação do ministro na sua questão de ordem? De fato, muita coisa mudou enquanto o processo estava na gaveta. Mas nem cabe pedir data venia para lembrar das engrenagens que se movimentam, muitas vezes, como neste caso, até com peças novas aplicadas com o maior cuidado nos lugares certos.

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Por José Pires

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