quinta-feira, 4 de maio de 2023

O cartão de vacina de Jair Bolsonaro e outros outros alvos que surgem no caminho da investigação

A primeira pergunta que me veio à cabeça quando caiu do nada a operação da Polícia Federal, que teve até busca e apreensão na casa de Jair Bolsonaro, é que raios o ex-presidente podia querer com a falsificação de um cartão de vacinação, ele que sempre fez questão de afirmar que não se vacinou e até fez disso uma marca pessoal. É natural que seus inimigos estivessem buscando coisas para incriminá-lo, até mesmo neste tema absurdo do negacionismo da vacina, que acabou complicando sua tentativa de reeleição. O que não se esperava é que o alvo fosse um cartão de vacinação.


O próprio nome da operação policial pode servir como explicação da surpresa de todos, não a surpresa de terem enfim colocado a polícia de manhã na casa do ex-presidente, mas do modo como lá se chegou. Cá pra nós, os adversários gostariam de procurar muita coisa na casa do Bolsonaro, mas um cartão de vacinação não estava, pelo menos até agora, entre esses objetos de desejo.


E não estou falando só do foco principal, que é Bolsonaro. São 16 pessoas investigadas pela Polícia Federal, incluindo o ex-assessor Mauro Cid, tenente-coronel que foi um faz-tudo durante todo o mandato do ex-presidente. Cid foi preso e teve também a casa devassada pela polícia. O que será que saiu dali, onde, em tese, procuravam cartão de vacina? A curiosidade cabe também ao que o tenente-coronel pode falar, além do que pode sair da boca de mais cinco que foram presos preventivamente.


Venire é o nome da operação policial, que vem da expressão em latim "Venire contra factum proprium". Em português, significa "vir contra seus próprios atos". “Factum proprium” indica algo da parte do próprio autor. E “venire contra” é a situação de contrariedade da expressão.


Não é exatamente a expectativa do encontro de um cartão de vacinação que movimenta a polícia e o Judiciário, em ações que evidentemente não cessam com a desta quinta-feira. Bolsonaro já andava chorando bestamente nos últimos meses e ao explicar-se diante de repórteres nesta manhã, logo depois da passagem da polícia por sua casa, o chorão também derramou lágrimas. Mas desta vez ele tem mesmo motivo pra chorar. E o motivo é que o que está em curso é do tipo "Venire contra factum proprium".


Quem já fez movimentos sociais usando técnica e inteligência sabe muito bem do que estou falando. Promotores, juízes e até mesmo políticos, que agem com o sentido pleno da palavra inteligência, adquirem muita experiência nisso. O método é focar em algo que na aparência é menos grave, às vezes até pouco, quase nada importante do ponto de vista jurídico, para chegar ao que realmente importa. Pode-se até ver uma contradição entre o que se procurava com o que de fato foi encontrado, mas só quem foi flagrado é que não vai gostar deste resultado.


Em política, pode-se, por exemplo, ignorar uma montanha de ilegalidades, enorme do ponto de vista jurídico e dos milhões, para fixar-se em uma falcatrua menor, que pode ser por exemplo o pagamento com dinheiro público de um show com uma estrela global. Ou então a reforma de um sítio no interior paulista. Pode ser também um triplex reformado no litoral ou algumas pedaladas. Tudo parece mixuruca frente aos milhões aparentemente ignorados, mas dá desmoralização política do mesmo jeito e às vezes até cadeia ou queda do poder.


É isso: a ação parece não ter relação com o objetivo, ocultando o propósito real, que pode ser um flagrante no adversário para empurrá-lo para as mãos da Justiça. Indícios ou provas que surgem podem até ser vistos por jornalistas e comentaristas dos mais variados como incriminações que surgiram contra os próprios atos, neste caso a busca de um cartão de vacinação — falso ou autêntico, não importa.


Esse modo de agir parece mais um exercício — ou uma busca ao acaso, para quem vê de fora. O processo aparenta ser aleatório, no entanto obedece a uma técnica e tem rumo, ainda que esteja aberto à inspiração ou a um impulso casual. Esse jeito de fazer a coisa certa serve também como atividade criativa, para encontrar o ponto em que numa encenação, um estudo ensaístico, num romance ou noutra forma escrita e até mesmo na música, no desenho ou na pintura ocorre o encontro da unidade de todo o conjunto criativo.


Venire contra factum proprium. É também uma forma de estudar o terreno, garimpar entre coisas que nada provam, até encontrar o que realmente importa. Como se viu, funciona para entrar na casa do adversário sem bater: “Bom dia, vim ver como está o cartão de vacinação”. Mas em gavetas e armários, num celular, entre papéis guardados ao acaso numa prateleira, tem todo um mundo a ser descoberto, ainda que esta revelação venha contrariando os próprios atos de quem encontra o que queria fazer crer que não estava procurando.

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Por José Pires

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