sexta-feira, 18 de novembro de 2022

A República dos "manés" e a ilha da fantasia de ministros do STF

No recado autoritário que deu em Nova York a um cidadão brasileiro que lhe fez de forma educada um questionamento, o ministro Luís Roberto Barroso consagra a velha tradição de que nos grupos de elite no Brasil é mais fácil os melhores serem forçados a piorar no convívio com o comportamento oligárquico das nossas instituições do que acontecer o contrário. Barroso parecia uma maçã aproveitável no balaio do STF, mas já está quase um Gilmar Mendes. Faltaria talvez uma fazenda em Goiás ou mesmo uns capangas, como afirmou em plenário certa vez um ex-colega dos dois ministros, o relator do processo do mensalão, Joaquim Barbosa.


Há algum tempo Barroso chegou a discutir asperamente com Gilmar em plenário, dando uma firme reprimenda no colega. Podia até parecer que o primeiro é que iria ter a primazia sobre a qualidade da Suprema Corte — não para quem não acredita, que é o meu caso, no aprimoramento dessa instituição vindo de dentro. Mas vejam só, o tempo colocou Barroso no mesmo plano de Gilmar, agora ambos com uma função parecida quanto ao momento político que vive o país. Poucas vezes se viu uma conjugação de equívocos em tal ordem. Os homens errados, na hora errada e no lugar errado — em Nova York, no Lide de João Doria. E tudo isso planejado com meses de antecedência.


Pode-se até discordar do tom de algumas interpelações dos ministros do STF feitas por brasileiros nos Estados Unidos, no entanto não tem como não considerar que é um direito fazer um questionamento a uma autoridade pública. Isso sempre dependerá do temperamento das pessoas. Não é o meu. Mas quem tem vida pública tem que aceitar. Autoridades que não atendem à solenidade de seus cargos, como ocorre como ministros do STF que se comportam como youtubers, estão ainda mais obrigadas a atender a tais reclamações. Para lembrar algo que já citei, essas coisas não acontecem com juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, porque eles preservam a dignidade dos cargos.


Respostas não podem ser impostas, mas a pergunta também não deve ser calada. Esta é uma regra básica de qualquer convivência, a de autoridades públicas ainda mais. Passeando de mau humor por Nova York, Barroso deu uma resposta que nivela o STF ao que há de pior no comportamento, digamos, social. “Perdeu, mané, não amola”, ele disse. A frase ficará no seu currículo enquanto ele for lembrado. Bandidos costumam dizer coisas assim quando eliminam inimigos ou mesmo parceiros do crime. As piores torcidas organizadas agem desse jeito com o outro time. Não ficará bem no currículo de um jurista. E o tal “mané”, nada mais é que uma abreviatura da antiga expressão “zé mané”, que identificava a pessoa do povo, o indivíduo sem posses ou poder, que não merecia atenção. O ministro pede que “não amole”, nas periferias matam, espancam o mané. Ou tomam o que é dele, que nunca vai poder apelar aos amigos do STF.


Está tudo errado, a começar pela interpretação de Barroso sobre o resultado político desta eleição, que de modo algum o “mané” perdeu. Primeiro que o resultado foi apertado, trazendo duas curiosidades: Lula foi o candidato a presidente mais votado da história e Bolsonaro ficou em segundo, pouca coisa atrás. Embora tenha havido um esforço do TSE e do próprio STF, com ações aparentemente orquestradas, muitas delas ocorridas muito antes do ano da eleição, com um ordenamento que parece obedecer a uma progressão organizada, a vitória de Lula não teve sustentação em qualidades políticas. O chefão petista ganhou pela intenção do eleitor de tirar Bolsonaro, que por sua vez foi bem votado por brasileiros que não queriam o PT de volta ao poder.


Outra questão que complica esta teoria de Barroso sobre “manés” derrotados é que a massa de brasileiros que repudia o PT e a esquerda brasileira demonstra muito mais fidelidade aos seus propósitos políticos e de vida — ainda que difusos, como na busca de uma doutrina mais clara — do que os eleitores que votaram em Lula. Essa votação do petista aparenta ser mais de ocasião, ao contrário do eleitor de Bolsonaro, que mesmo com a derrota do candidato permanece firme na defesa da decisão tomada, parecendo querer encontrar conceitos existenciais mais amplos.


Derrota não houve, embora existisse uma evidente forçação de barra para favorecer Lula, com a cumplicidade totalmente fora de ética — e da lógica profissional — de muitos na imprensa. E não estou falando dos acontecimentos do segundo turno, depois de estabelecida a polarização que Lula e seu partido precisavam para serem competitivos. Lula queria vencer já no primeiro turno e para isso fez todas as armações para enfraquecer ou eliminar outras candidaturas. Precisava disso para que não tivesse que dar explicações sobre o que fez no ciclo de governos do PT, quando mandava no Palácio do Planalto. Ao montar um cenário de polarização, o PT eliminou o debate sobre a realidade brasileira. A imprensa inventou uma falsa pauta de “terceira via”, colocando candidatos em segundo plano e privilegiando a cobertura das campanhas de Lula e Bolsonaro. Prevaleceu a retórica da picanha com cerveja e de conspirações eleitoreiras.


E mesmo assim, Lula não ganhou no primeiro turno. Os manés não deixaram. A esquerda e seus aliados de ocasião também não fizeram maioria no Legislativo e nem foram vitoriosos nos governos estaduais. Os manés, de novo. A análise de Barroso é tão equivocada que a partir da divulgação do resultado no segundo turno o país foi tomado por multidões, consagrando um movimento de massas que já podia ser observado antes do início oficial da eleição. Desde o fim da ditadura militar não acontecia algo parecido. Falei dessa percepção ainda no primeiro turno. E a imprensa está até agora tentando apagar este acontecimento simplesmente deixando de noticiar.


Pode-se questionar certas palavras de ordem, tem gente que não gosta dos lugares escolhidos para as manifestações, no entanto o que vem ocorrendo há mais de duas semanas, com multidões praticamente acampadas nas ruas, é um fenômeno popular que terá um longo espaço pela frente de construção de uma realidade política muito diferente da que o Brasil viveu até agora. E não serão grosserias verbais — ou inquéritos “de ofício” com ares inquisitoriais — que vão brecar essa movimentação social sem precedentes.


Ao contrário, a incompreensão do que vem ocorrendo pode radicalizar o destino desta expressão popular, dando um rumo aí sim “antidemocrático” a um movimento social que expressa o desejo de participação de uma ampla faixa da população preocupada com questões morais, políticas e da qualidade da cultura, que me parecem justas, ainda que me atinjam menos do ponto de vista pessoal do que a esta gente.


É fora de sentido a compreensão que o ministro quer dar ao resultado de uma eleição, eliminando socialmente quem, do ponto de vista dele, “perdeu” na votação. O ministro se coloca como representante de uma casta que não quer ser “amolada” por reivindicações fora de seu controle.


Tampouco faz sentido sua tentativa de anular o papel da sociedade na reforma ou mudança total de uma ou outra decisão jurídica. No caso específico, a base das manifestações pelo país todo é a indignação com a eliminação das contas que Lula deveria estar prestando à Justiça. Nada tenho a ver com a direita nem com o bolsonarismo, mas neste ponto os manifestantes estão corretos. O STF cometeu um grave erro.


E a não ser que Barroso queira anular a democracia, não se pode tirar o direito de opinião sobre este assunto. Sempre se diz que este é um valor constitucional, mas nem precisa disso. É possível mexer até nas constituições e acreditem que inclusive pode ser para melhorar e não como se faz em nosso país. Em qualquer lugar onde haja democracia, não se aceita cala-boca. A democracia mantém sempre aberta a possibilidade de resolver divergências de opinião, dando voz mesmo aos perdedores, ainda que juízes pedantes não queiram ser questionados. Podem voltar leis que foram derrubadas por conveniência política, pode-se acabar com prescrições de larápios que envelhecem junto com seus processos nas gavetas. O Brasil pode ser melhorado. E terá que ser pelos manés, seja qual for a cor da camiseta deles.

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Por José Pires


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Imagem: Foto que fiz em Londrina, no Paraná, esta semana em uma manifestação onde fui assistir in loco com andam as coisas

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