terça-feira, 11 de março de 2014

Jayme Leão, o mestre do desenho


Com a idade a realidade vai trazendo pra gente a percepção de que existe algo maior do que o mistério sobre nosso destino final. É a dor da ausência dos que se vão antes. Chego em casa agora depois de passar umas horas pedalando na escuridão dessa noite nublada e recebo a notícia da morte do grande Jayme Leão. Como influência pessoal o Jayme tem na minha vida uma importância que é superada apenas pela do meu pai. Os dois tinham personalidades diferentes, mas uma grande semelhança no apreço pela cultura e na honestidade pessoal, que no Jayme era um predicado que ele juntou ao idealismo político. O idealismo é uma marca notável no seu trabalho na imprensa, de alta capacidade criativa.
Ele teve uma participação ativa na nossa imprensa alternativa, os jornais semanais de resistência à ditadura militar que contribuíram de forma decisiva na democratização do país. Trabalhou no semanário Opinião, que era editado no Rio, e foi um dos fundadores do jornal Movimento, de onde tenho ótimas lembranças, apesar da nossa convivência naquela redação ter sido num período de trevas deste nosso Brasil. Estive no Movimento desde seu número zero e foi o Jayme quem me levou a este jornal, onde comecei na imprensa em São Paulo. Minha ida de Londrina para aquela cidade aconteceu também graças a ele.
Movimento teve censura prévia desde o primeiro número, lançado em julho de 1975. O jornal deixou de existir em 1981. Editar aquele jornal era uma batalha dura. Para ter o material de uma edição era preciso produzir duas ou três vezes mais do que saia publicado, buscando driblar a censura e tentando criar algo que não fosse vetado. Senão não saía jornal.
A presença do Jayme Leão no Movimento dava um ânimo especial, porque ele sempre foi o tipo de pessoa que jamais se deixava abater nas situações difíceis ou no enfrentamento de trabalho duro. E aquele foi um tempo nada fácil. Era ele quem estava sempre estimulando a todos nas madrugadas que passávamos fazendo esboços de desenhos que seriam enviados de manhã para a censura em Brasília, em malote despachado por avião. Sua presença era um reforço muito especial também devido à sua impressionante habilidade técnica. O Jayme fazia de tudo em matéria de desenho: charge, ilustração, quadrinhos, caricatura, desenho de humor e trabalhos de conteúdo dramático ou mais naturalista, como retratos e ilustrações onde é preciso passar ao leitor informações precisas. Até letras ele era capaz de fazer. Desenhava à mão títulos perfeitos, como os de hoje que são feitos por computador. Essa capacidade permitia a ele na década de 70 a execução de capas memoráveis (que tinham de ser feitas no mesmo dia), com arranjos gráficos que só com computador é possível fazer.
Nesta época os textos eram feitos em máquinas de escrever e o material gráfico era todo resolvido à mão. E neste caso ter num jornal um profissional habilidoso como o Jayme Leão facilitava tudo, principalmente para uma redação de uma publicação sob censura da ditadura, que apertava ainda mais os prazos. O Jayme tinha uma capacidade criativa tremenda e conseguia obter soluções com rapidez, o que é imprescindível no fechamento de uma edição. Nunca vi alguém com tal multiplicidade de talentos e sua habilidade fazia muitas vezes com que nos juntássemos à sua volta para só ficar apreciando e aprendendo.
Me lembro de uma cena que mostra bem como ele sempre foi o centro da atenção até de quem era do ramo. Foi nos anos 70. Demos um curso rápido para alunos da área do desenho. As aulas eram na USP e consistiam basicamente de demonstrações técnicas. Fazíamos os desenhos na frente dos alunos. Eram vários desenhistas e me lembro de dois deles que já eram bambas do traço: o Alcy e o Chico Caruso. Fomos fazendo os desenhos, até que o Jayme também começou a rabiscar num papel. Foi juntando gente em torno dele, com os desenhistas parando de desenhar e chegando mais perto, até que no final apenas o Jayme Leão é que trabalhava com aquela impressionante facilidade, esboçando no lápis, passando a tinta nanquim no papel, jogando cores com o pincel e explicando todo o processo de forma muito tranquila. De pé em volta da mesa os alunos e os desenhistas acompanhavam maravilhados aquele grande mestre desenhando.
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Por José Pires

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