segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Relato sobre a ética agredida pela corrupção

Enquanto aguarda o nascimento de sua neta, o jornalista Ricardo Noblat escreve em seu blog na internet sobre a experiência de ser avô. Tem saído crônicas muito boas, apesar de alguns exageros que devem ser relevados nessa situação, especialmente no caso de Noblat, um avô de primeira viagem. E, pelo que ele conta, a mulher dele é pior; no bom sentido, é claro.

Hoje Noblat escreve uma crônica que acho que deve ser passada à frente. É um ótimo relato sobre a experiência de um jornalista envolvido em um trabalho ético e de qualidade técnica, elemento que no jornalismo é relacionado diretamente à liberdade de expressão e apego à transparência política.

E o que isso tem a ver com a neta do Noblat? Bem, nesta crônica ele fala das pressões sobre quem labuta pela ética neste país, especialmente em regiões onde a corrupção estendeu seu domínio. No caso, o jornalista fala da época em que era editor em Brasília, do Correio Braziliense − onde fez um excelente trabalho criando um jornal com excelente conteúdo, além de uma beleza gráfica e editorial como poucos veículos brasileiros já tiveram − ele teve até um filho agredido com extrema violência por sequazes de políticos que dominam a capital do país.

Mas fiquem com o texto do Noblat, um relato muito importante sobre estes tempos sombrios.
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POR José Pires


DIÁRIO DE AVÔ
O pior ano de nossas vidas

Ricardo Noblat

Estava na minha sala de Diretor de Redação do Correio Braziliense quando o telefone tocou e eu atendi. "Pai, me deram uma surra. Foi a turma do Luiz Estevão. Estão me levando para o hospital", comunicou-me André, meu filho mais velho, na época aluno de jornalismo do Centro Estudantil Universitário de Brasília. Foi entre o primeiro e o segundo turno da eleição de 1998 para governador de Brasília, disputada por Cristovam Buarque (PT), candidato à reeleição, e Joaquim Roriz (PMDB), que antes governara a cidade duas vezes. Roriz venceu.

Ao longo da campanha, André havia sido advertido mais de uma vez por estudantes, cabos eleitorais do candidato ao Senado Luiz Estevão de Oliveira - sim, o único senador cassado até hoje por quebra de decoro. Meteu-se com desvio de dinheiro público para a construção da sede do fórum da Justiça do Trabalho, em São Paulo. "Avise ao seu pai para deixar de falar mal dos nossos candidatos senão vai sobrar pra você", dissera um dos estudantes a André. Luiz Estevão era aliado de Roriz. E até então eu me dava razoavelmente bem com ele.

Corri para o hospital onde André foi atendido. Depois fomos prestar queixa numa delegacia onde encontramos os agressores. Convocado por eles, ali chegara para aconselhá-los um dos responsáveis pela segurança da campanha de Roriz. Rebeca, Gustavo e Sofia nos esperavam aflitos no portão de casa. Começava assim a fase mais assustadora e repleta de conflitos da nossa vida em família até hoje. Não tinha como provar que o senador eleito mandara bater em André. E ele jurava para amigos comuns que seria incapaz de encomendar tamanha crueldade.

Roriz, mais do que Luiz Estevão, não se conformava com a mudança na linha editorial do Correio patrocinada por seu presidente, o jornalista Paulo Cabral. O jornal deixara de ser chapa-branca. Não poupava de críticas nem mesmo aqueles que sempre tratara como seus fraternais "amigos". Era o caso dos dois. Uma das empresas de Luiz Estevão construíra o prédio do jornal. Como governador, Roriz premiara o Correio com gordas verbas de publicidade. Eleito para governar Brasília pela terceira vez, imaginou que poderia amansar o jornal. Não amansou.

Na noite do dia 18 de fevereiro de 2000, Gustavo assistia no Parque da Cidade ao show de uma banda de rock quando três rapazes se aproximaram dele e um o atingiu com uma navalhada no rosto. Pode ter sido um estilete. Os rapazes não trocaram uma palavra com Gustavo. Fugiram em seguida. No momento em que Gustavo deixava o local acompanhado de amigos, um rapaz alto e louro se ofereceu para ir com ele até o hospital mais próximo. Era o subsecretário da Juventude do governo Roriz, ex-líder do bando que há dois anos surrara André.

Pedi garantias de vida a José Carlos Dias, ministro da Justiça. A Comissão de Direitos Humanos do ministério investigou as agressões e concluiu que elas tiveram "motivação política". Durante 15 meses meus filhos viveram sob a proteção de policiais militares e de agentes particulares de segurança. Gustavo foi obrigado a se submeter a uma operação plástica. Por pouco não ficou com parte do rosto paralisada. Certa noite, minha casa foi alvejada por um tiro disparado por desconhecidos de dentro de um carro.

Sentia-me culpado diante de Rebeca e dos meus filhos. Eles pagavam pelo que eu fazia ou deixava de fazer como jornalista. Gustavo e Sofia eram os mais inconformados com as restrições à sua liberdade. Mais de uma vez Rebeca sugeriu que fôssemos morar em outra cidade. Por telefone, passava o dia monitorando os filhos e os seguranças deles. Em dado instante achamos mais prudente tirá-los de Brasília. Gustavo e Sofia foram estudar na Inglaterra. André, na Espanha. A casa se esvaziou de repente.

O êxito pouco ensina. Aprende-se mais com o fracasso. Momentos alegres são passageiros. Os tristes deixam marcas para sempre. A sabedoria está em tirar proveito desses. Não sugiro a ninguém que se autoflagele. Sou cristão e nem por isso admiro o martírio. Mas estou convencido de que a perseguição movida contra mim, e que alcançou a minha família, serviu para consolidá-la de vez. Rebeca não permitiu que os filhos se tornassem adultos medrosos. E eles aprenderam com o episódio a dar mais valor uns aos outros e à própria vida em família.

(E aí, Luana? Por que não vem logo? Daqui a pouco serei obrigado a contar as histórias dos meus pais, e as dos pais deles para preencher o tempo enquanto você não chega.)

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