A frase é de Alvaro Lins (1912-1970), o grande Alvaro Lins, para mim um dos grandes críticos brasileiros, intelectual do mais alto nível e de especial valor para a nossa cultura, já que foi um dos primeiros intelectuais a compreender e dar espaço para a modernização da literatura brasileira. E isso lá atrás, a partir da década de 20.
A frase eu tirei de “Literatura e vida literária: diário e confissões”, um livro precioso de 1963 da editora Civilização Brasileira, livro que leio, releio e leio novamente, porque Lins é um desses autores que me ajudam a manter a cabeça em ordem e não descuidar da escrita. Nas entrelinhas ele dá também lições de dignidade, o que é muito útil no Brasil de hoje.
O livro saiu quando Lins completou 50 anos e traz anotações que ele vinha fazendo desde a juventude. Ele não identifica o crítico que ataca a nascente literatura moderna com o argumento de uma total falta de visão poética, mas muitas figuras importantes da nossa história política e literárias estão ali identificadas. Mas não são os nomes que importam. O que interessa é seu alto grau de sensibilidade, um intelectual com uma visão da literatura e da política como poucos em nossa história. Em alguns desses textos tão antigos ele chega a ser profético.
Alvaro Lins teve também uma participação de destaque em nossa história política, sendo protagonista de um fato que a meu ver é de muita relevância histórica, mas infelizmente permanece apagado. É um episódio importante até porque revela uma grande nódoa na propagada imagem de erfeito democrata do ex-presidente Juscelino Kubitscheck.
As relações de seu governo com a ditadura salazarista de Portugal foi um dos grandes erros políticos de JK. Ele deu apoio ao regime de Oliveira Salazar, uma das ditaduras mais atrasadas do século 20, um poder autoritário e mesquinho instalado exatamente no país mais próximo de nós historicamente. O fato relatado por Lins é da década de 50.
Alvaro Lins foi embaixador de Portugal nessa época e lutou para que Juscelino Kubitscheck rompesse com Salazar. Como a relação entre Salazar e JK manteve-se, o crítico literário rompeu publicamente com JK. Tenho toda a história num outro livro muito bom, “Missão em Portugal”, onde ele conta toda esta experiência. É óbvio que não é uma narrativa fechada naquele pequeno país, já bem decadente na época. É uma aula de história, mais uma aula do mestre Lins onde ele passa noções de independência nas relações externas que poderiam ser muito úteis hoje em dia, com este governo que tem a prática de se ligar politicamente a ditaduras detestáveis.
O fato importante nesta história é quando o embaixador Lins deu asilo a um importante opositor perseguido por Salazar (o general Humberto Delgado) e não cedeu às terríveis pressões para entregar o asilado político, que ficou sob proteção do embaixador na sede da embaixada brasileira. O general ficou na embaixada durante janeiro e fevereiro de 1959. Todo este tempo o prédio esteve cercado pela temida política política de Salazar, a PIDE, e com os telefones censurados.
Delgado é importante personalidade tanto na instalação do regime de Salazar quanto na oposição posterior. Em 1959, Salazar manteve a ditadura com uma eleição fraudulenta contra Delgado. que em sequência pediu asilo na embaixada brasileira. O general foi depois para o Brasil e acabou sendo assassinado pela PIDE na fronteira espanhola em fevereiro de 1965. O essencial no rompimento entre Lins e JK é que o presidente brasileiro foi cúmplice da ditadura portuguesa.
É uma história relativamente longa, fica para outro momento, mas o resumo é que JK perdeu a chance de dar um basta à ditadura de Salazar, o que talvez tivesse tido influência inclusive na política interna do Brasil. Não esqueçamos que poucos anos depois tivemos o golpe de 64.
Mas o fato é que se JK tivesse sido ao menos firme com Salazar, seria uma figura histórica mundial. Teria dado início também a um conceito de relações externas mais aberto aos direitos humanos e à democracia internacional.
Mas o nosso JK vive mesmo é da superestimação que vem sendo feita da sua figura, uma elevação da sua imagem que tem servido meramente a propósitos eleitorais.
A carta de “rompimento político e pessoal com o presidente Kubitscheck” escrita por Lins é uma das grandes peças da nossa história. Não é um texto longo, sou capaz de um dia desses fazer um trabalho de datilografia para publicá-la na internet. Com a demissão, evidentemente Lins não permitiu o famoso expediente político de pegar qualquer outro cargo — o que já havia feito anteriormente, quando recusou a nomeação para ministro do Tribunal de Contas oferecida por JK. Isso mostra de forma prática o caráter do mestre, neste país em que facilmente troca-se a dignidade pelo osso.
No livro dos diários, Lins discute também política, ele que naqueles tempos já expunha divergências com a esquerda, especialmente intelectuais que se guiavam pelo marxismo. Num trecho, ele fala que todo marxista deveria conhecer e praticar uma frase que numa famosa discussão Marx disse aos gritos. A frase é a seguinte: “A ignorância nunca foi útil a ninguém”. Pelo que a gente vê hoje em dia, muitas décadas depois a esquerda ainda não ouviu a frase.
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POR José Pires
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Imagem: A obra de Alvaro Lins na minha estante. O mestre está lá sempre pronto a me ensinar