Até agora a imprensa brasileira não compreendeu o que vem ocorrendo na política brasileira, com esses movimentos de rua em reação ao resultado eleitoral deste mês de outubro. A pauta do jornalismo mantém-se com o conteúdo errado, totalmente contrário a um conceito comum da profissão, que é o de ter distanciamento crítico ao levar informação ao leitor, mesmo que o que venha das ruas não esteja de acordo com as expectativas editoriais. Apontei essa desinformação, quando uma semana antes da eleição em primeiro turno afirmei que o jornalismo embalado por um sentimento oposicionista estava tendo uma falta de percepção sobre a quantidade de gente que estava indo às ruas em torno de Jair Bolsonaro.
Desde então, o Brasil vive um movimento de massas como não se via desde as manifestações das “Diretas já” ou o mais recente movimento dos “caras-pintadas”, que desencadeou a queda de Fernando Collor. Eu diria que nas manifestações que estão acontecendo atualmente existem mais elementos que permitem caracterizá-las como movimentos de massa. São mais espontâneas do que a imprensa vem dizendo, partem de sentimentos muito mais variados, além de trazerem novidades interessantes aos movimentos políticos desta nossa história recente.
A imprensa vem tentando fazer colar o apelido de “manifestações antidemocráticas” ao que vem acontecendo, o que revela não só uma visão pré-determinada sobre os fatos — o que vai contra o básico de qualquer manual de redação — como também uma estúpida falta de senso de oportunidade. Com isso, perde ainda mais leitores. A imprensa vive uma crise de identidade sem precedentes, que no Brasil tem menos a ver com a entrada em campo da internet do que com a doutrinação esquerdista nos cursos universitários, que fez as redações serem tomadas por profissionais que parecem mais disposto a dar lições aos leitores do que as informações que todos precisam.
Daí o rótulo de “manifestações antidemocráticas” aplicado às multidões de cidadãos inconformados que se juntam em todo o país, de maneira pacífica. E esta é a mesma imprensa que faz pouco tempo tinha a maior compreensão com a violência dos “black blocs” da esquerda, que até mataram um jornalista, e que também não faz reparos a Lula, quando o petista elogia correligionários seus que quase mataram um antipetista na frente do Instituto Lula, além de dar um tom de normalidade às suas relações pessoais com ditadores sanguinários como Daniel Ortega e Nícolas Maduro, além do convívio por décadas com os irmãos Castro, da ditadura cubana. Epa, isso nem pode ser mencionado, senão o TSE manda a Polícia Federal interrogar.
O rótulo contra as manifestações que começaram com o apertado resultado eleitoral do segundo turno serve apenas para afastar os sites e publicações impressas de milhões de pessoas que necessitam urgentemente de informação qualificada, até porque incapacidade de informar é outra qualidade que a direita brasileira não tem. Nossa direita faz jus à sua o origem recente, na confusão cultural e moral criada pela esquerda. A direita que aí está é também doutrinária, com uma visão cultural precária e simplificadora da realidade.
A esquerda não compreende o que está ocorrendo, tampouco seus jornalistas domados nas universidades. A direita também desconhece os meios para aproveitar o imenso capital político dessa multidão que acampa nas ruas por dias para expressar suas indignação, que tem também um triste sentimento de desconsolo, de uma cidadania abandonada por todos os lados.
Neste domingo fui observar de perto uma dessas manifestações que nos últimos dias juntou milhões de pessoas pelo Brasil afora. Em Londrina ocorreu uma de grandes proporções, entre as maiores do país, não só em comparação com a população da cidade, a maior do Paraná depois da capital. Sua população é de quase 600 mil habitantes. Os manifestantes se juntaram em torno do Tiro de Guerra, que fica na periferia da cidade. Que não se pense numa aparelhada fortaleza militar. O nosso Tiro de Guerra parece mais uma chácara próxima da zona rural, com poucas casas dos responsáveis pelo local, sem nenhuma cerca alta ou qualquer outra segurança.
Os jornais e sites vêm destacando essa preferência pela proximidade com localizações militares, apontando isso como uma visão golpista. Mas deveriam investigar se isso não tem a ver com valores de legalidade e respeito constitucional, que pode fazer muito mais sentido nessas manifestações do que um sentimento golpista antidemocrático. Certos setores podem ter de fato esta intenção, mas vem de uma minoria com uma visão absurda até por sua impossibilidade. Na generalização, no entanto, a imprensa deveria trazer aos leitores algo mais que a falsa caracterização de milhões de pessoas como golpistas, a menos, é claro, que tenha provas da existência de uma conspiração de tal magnitude.
Não é necessário aprofundar este tema. Basta experiência de vida para saber que nos aproximamos daquilo em que confiamos ou de onde esperamos proteção. Em vez de atacar e até fazer ironias com esses movimentos, nossa imprensa deveria ponderar sobre a razão desses movimentos não se aproximarem do Legislativo, mesmo do Executivo e muito menos do Judiciário. O correto seriam manifestações ao lado de instituição do Judiciário, porém os brasileiros sabem que a Justiça atualmente não serve para a defesa nem contra os crimes mais bárbaros.
Os manifestantes de Londrina ficaram toda a semana na frente do Tiro de Guerra. Passei por lá na tarde de sábado esperando encontrar um pequeno grupo de camiseta amarela. Fiquei impressionado com a quantidade de gente e voltei neste domingo para conferir se mantinha-se o ânimo de milhares de pessoas que tomaram quarteirões em torno da instituição militar. No domingo, a quantidade de pessoas era muito maior. Passei cerca de três horas caminhando por todos os lados, fazendo perguntas, conversando com gente de várias idades.
Havia uma grande quantidade de jovens casais com filhos, muitos adolescentes. Esqueçam aquela equivocada tentativa de desqualificação acolhida pela imprensa, de que esses movimentos são da chamada terceira idade, das “tias do Whatsapp”, como repetem com a teimosia de militantes esquerdistas, para desmoralizar esses movimentos. A maioria dos milhares de manifestantes pacatos, espalhados por todos os lados, era de pessoas jovens. O que chama a atenção também é a grande quantidade de mulheres. Muitas. Jovens mães e muitas adolescentes, o que garante uma previsão de continuidade na motivação de mudar as coisas no país.
Faixas pedindo intervenção militar eram muito poucas, podendo ser contadas nos dedos entre milhares de pessoas em vários quarteirões durante todo o domingo. Quando fui embora para casa na boca da noite, às sete horas, o local ainda estava lotado. Não observei a questão militar como uma preocupação das pessoas. Ninguém trouxe este assunto nas conversas comigo. O que pude constatar é um sentimento de que a eleição não foi justa, uma percepção que não deixa de fazer sentido em razão da condução autoritária do ministro Alexandre de Moraes, à frente do TSE. Encontrei pessoas que me afirmaram que acreditam que houve fraude, nenhuma delas fazendo alusão às urnas.
Transitei com a maior tranquilidade, evidentemente sem camiseta amarela. Cheguei a me identificar como jornalista, quando minhas perguntas levaram a pessoa a me questionar nesse sentido. Fui tratado com o maior respeito, inclusive quando pedi para subir em dois caminhões para tirar fotos. O clima era de uma grande festa familiar, até pelas tendas em que as pessoas se juntavam à espera de algo que nem elas sabiam, já que há um abandono inclusive das lideranças da direita, tão imbecis e desrespeitosas quanto as cúpulas esquerdistas. É assim que no geral se age na política brasileira quando se coloca à prova a capacidade política para o enfrentamento a desafios históricos. O Brasil vive mais uma vez o paradoxo de ter as piores lideranças, quando este pobre país precisa de figuras políticas de valor.
Na grandiosa manifestação de Londrina, onde juntou-se uma multidão jamais vista numa atividade política por aqui, outro fato que chamou a atenção é a tranquilidade presente, numa harmonia que, como eu disse, dava a impressão de uma imensa festa familiar. Não havia nem a tensão e gritaria que é normal em eventos políticos com multidão. Quase nada de bebidas alcoólicas, uma amabilidade geral sem conflitos de nenhum tipo. Devia haver cerca de 10 mil pessoas em trânsito enquanto caminhei durante a tarde naquele ambiente. Não vi nenhum bate-boca. Ninguém se negou a responder a qualquer pergunta minha ou me tratou com desconfiança ou agressividade.
Outra questão importante que a esquerda podia imitar dessas manifestações da direita é o cuidado com a limpeza do lugar. Nada de lixo espalhado, nenhum marmanjo usando o espaço público como banheiro. Foram instalados banheiros químicos. Ao microfone, ouvi várias vezes o pedido para a atenção com o próprio lixo e evitar sujeira no ambiente. Mas isso vem sendo a regra nesses últimos tempos. O pessoal do “movimento antidemocrático” parece que em manifestações cuida melhor do bem comum do que a esquerda.
O clima nesta manifestação de domingo me pareceu mais de desalento. Havia uma espécie de satisfação cívica em estar ali, mas era evidente a dificuldade de propósitos. O que pode ser observado até aqui é que temos uma ampla faixa da população numa triste orfandade cívica. E que não se pense que é um desalento apenas de gente da direita. Pelo menos um terço dos eleitores de Lula deram seu voto ao petista por exclusão. Os brasileiros perderam totalmente os canais de representatividade, a começar dos partidos, inexistente atualmente como instituições com real ligação com o povo. A direita também não tem capacidade de organização nem gabarito cultural para liderar esse sentimento espontâneo da população.
É nessa falta de compreensão do próprio destino da ação — que em política só pode adquirir sentido com lideranças capacitadas e organização — que está o risco para a nossa democracia. Não pela presença nas ruas de uma população inconformada, que tem no resultado desta eleição apenas uma justificativa prática para expressar o descontentamento. É nesta confrontação popular que se dá a polarização de fato e não no embate ideológico de propaganda feito por Lula e seu partido nas campanhas nos dois turnos.
Lula e seu partido forçaram a barra desde o primeiro turno para a criação de um falso clima de polarização. De um lado tinha até “fascismo”, lembram? Em arranjos de bastidores, quando foi derrubando candidaturas por meios de negociações que com certeza causarão muita indignação se um dia for revelado o que deu ou prometeu nesses acertos, Lula fez o de sempre: armou um cenário favorável. O chefão petista, no entanto, errou na avaliação dos níveis de rejeição. Esperava muito menos reação contrária dos eleitores e superestimou a rejeição a Bolsonaro.
É um problema de equivalências. Lula queria limpar sua imagem a partir do contraste com Bolsonaro. Ocorreu o contrário: Bolsonaro teve suas más-qualidades amenizadas na comparação com o passado de Lula. E não é pra menos. A própria eleição de Bolsonaro tem origem na corrupção e no desgaste moral dos governos petistas.
Pois então, Lula queria a polarização. Neste plano, o petista contava também com os arranjos tradicionais da política brasileira depois de uma eleição, quando chefes políticos e as elites deixam os conflitos de campanha para trás, acertando-se com o vencedor na divisão das lucratividades do poder.
Neste ano veio então esta novidade. As ruas trazem a polarização por uma via política de expressão da multidão que, pelo menos por enquanto, tem um vigor espontâneo. Se alguém acha que basta acionar as pessoas por Whatsapp para lotar as ruas é porque desconhece como se faz política e as dificuldades de juntar gente nas ruas. Se fosse assim tão fácil, a esquerda é que estaria exibindo força popular, algo que não demonstrou nas ruas nem durante a campanha eleitoral.
Sempre ouvi falar de “povo nas ruas”, na maioria das vezes em tom de exaltação da vontade popular. Pois aí está. A explosão popular, neste caso, se bem direcionada qualifica e não prejudica a democracia. Para isso é necessário lideranças de qualidade, um governo com abertura para uma união nacional, mas com o espírito de transição do que da hegemonia política. Bem, não precisa dizer que Lula e seu partido não são indicados para esta ocasião histórica.
O povo que está nas ruas, como eu já disse, pode ser classificado como uma vasta porção da população que não se sente representada não só por partidos — que sequer existem. O pessoal do verde-amarelo sente-se abandonado por todas as instituições, sem um anteparo nem dos poderes da Justiça ou dos profissionais do Direito. Passar o domingo com a família na frente de um quartel militar, como eu pude ver pessoalmente, foi a maneira de mostrar que é hora de pedir que se dê um basta no abandono de valores que são caros a uma parcela significativa de brasileiros.
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Por José Pires