Esta semana o cartunista Solda foi demitido de seu trabalho no site de
O Estado do Paraná, jornal que deixou de ser impresso recentemente (ou melhor: fechou mesmo) para existir apenas na internet.
Demissões acontecem e podem até ser justas e muitas vezes é o próprio demitido quem pede o boné, o que, a propósito, sempre aconteceu bastante entre humoristas. Mas vivemos em uma época que não têm graça alguma, mesmo que a propaganda esteja o tempo todo exibindo largos sorrisos. De modo que hoje em dia tem muito palhaço que só janta se sobrar algo do almoço do leão.
Acontece que a demissão do Solda não é uma questão trabalhista comum e também não é uma conclusão editorial corriqueira. O cartunista foi demitido depois do jornalista Paulo Henrique Amorim acusá-lo por racismo a partir de uma interpretação apressada e superficial de uma charge sua publicada no site de
O Estado do Paraná. Veja ela lá em cima. Amorim publicou o desenho com um título seu aplicado em cima: "Não, nós não somos racistas".
A charge alusiva à visita do presidente Barack Obama ao Brasil traz um macaco fazendo o famoso gesto de banana. E Amorim viu no desenho do macaco a caricatura de Obama, que é claro que todo mundo deve saber que é o primeiro presidente negro dos Estados Unidos.
A demissão veio dessa conclusão apressada, que saiu, a meu ver, da necessidade do jornalista em seguir com estratégia de demonização dos adversários, algo que vem ainda da eleição passada e que virou um cacoete estilístico seu. Se por uma questão de ética um jornalista jamais deve subir em palanque, o que dizer dos que nunca descem dele? É óbvio que Amorim não consegue ver mais nada de forma equilibrada, daí acabou errando desgraçadamente no ataque à charge do Solda.
Algum leitor poderia até alegar alguma ambigüidade no desenho, mas só um leitor leigo no assunto seria perdoado por uma conclusão tão precipitada. Um profissional não poderia de forma alguma cometer um equívoco dessa natureza. Isto evidentemente se o profissional for de fato um conhecedor das diversas linguagens jornalísticas e não apenas um alfinetador, o que parece ser a especialidade única do Amorim e sua idéia fixa.
E acusação de racismo também é algo muito grave. Hoje é um crime previsto no código penal e, além disso, é um ataque que tem sido usado de forma até histérica pelos petistas para fugir do debate real dos problemas brasileiros e principalmente das falcatruas do governo que está no poder.
Então, para dizer que alguém é racista exige-se que o acusador ao menos faça uma pesquisa decente sobre a história profissional do acusado, o que hoje com a internet é muito fácil e, no caso do Solda é ainda mais facilitado. Além de bastante conhecido, o cartunista tem um blog já bem longevo na internet. Se não fosse um mero alfinetador, Amorim poderia ter visto numa rápida visita que em seu trabalho o Solda tem até uma diferença profissional que o destaca, que é uma preocupação humanista nos textos e nos desenhos.
Gosto também de humor sarcástico e até do panfletário. Deve existir espaço pra tudo. Mas no trabalho do Solda não existe o sarcasmo, nem o ataque vigoroso à imagem de ninguém. Nesse negócio de macaco, acho que o Solda não desenhou nem ditador como gorila, como tantos fizeram. Seu humor busca uma compreensão e não a demolição.
Mas quando é que o Amorim iria tentar entender algo assim, se está sempre buscando apenas a chance de exercer seu papel de alfinetador? Sua interpretação imediata foi a de que o macaco seria o Obama — o que parece um preconceito da cabeça dele — e ele seguiu adiante porque o objetivo nem era a charge em si, mas dar o seguimento à estratégia de demonizar os adversários, o que fica claro no pequeno texto que inseriu abaixo do desenho, que é exatamente o seguinte: “Em tempo: este post é uma singela homenagem ao Ali Kamel".
O jornalista Ali Kamel é editor de
O Globo e uma voz crítica às variadas idéias do interesse do projeto de poder do PT. Ele é de tal forma eficiente que os blogs e sites a serviço do governo vêm, desde o mandato de Lula, tentando demonizá-lo em caráter pessoal. Algo que desagradou demais ao governo petista e seus acólitos e agregados ao poder foi a posição de Kamel contrária à política oficial de cotas raciais, com bons textos que desmontam de forma inteligente este artifício assistencial e eleitoreiro. O jornalista acabou publicando um livro de sucesso sobre o tema, de nome "Não somos racistas".
Depois de certa experiência na profissão a gente sabe o que esperar de cada colega. Por isso, não me espanta que Amorim tenha feito o que fez. Eu cairia da cadeira se fosse avisado de alguma análise aprofundada feita por ele. Algo que não fosse apenas uma frase irônica e atrelada a algum interesse ocasional seria mesmo de espantar.
Não vou me estender sobre o perfil de Amorim, que tem um site, o "Conversa Afiada", onde o que ele faz lembra sempre o adjetivo que dá origem ao trocadilho.
Coerência também não é seu forte. Ele já foi contra o Lula e simpático a Fernando Henrique Cardoso e vice-versa, com seus sentimentos conduzidos na razão do poder de cada um. Quando Lula e o PT não pareciam ter chances de obter o poder e gramavam na oposição, o chefe petista foi chamado de desonesto por Amorim. Por isso, Lula processou a TV Bandeirantes, onde o jornalista tinha um programa. Hoje, Amorim está com Lula e seus companheiros.
Não há nada de surpreendente nisso que ele fez. O que surpreende é a direção um site jornalístico tomar uma decisão apoiada numa opinião de Amorim, ainda mais a decisão drástica da demissão de um de seus colaboradores mais importantes. Estou tentando resistir a um trocadilho com o nome do grande cartunista, mas uma bola dessas quicando na área tem que ir pro gol: para o site, a demissão do Solda não tem conserto.
Se a direção de
O Estado do Paraná não teve capacidade profissional de ver o desgaste que uma demissão dessas causaria na imagem de um site tão novo, devia ao menos ter consultado o departamento de marketing.
Solda é um ótimo cartunista e de uma habilidade tão original no desenho que tem até a admiração de seus pares, o que entre desenhistas é algo muito raro. Afinal, quem tem uma visão profissional bem elaborada acaba desenvolvendo critérios mais rígidos de apreciação na sua área de atuação.
Amorim mostrou que é um fracasso para analisar uma charge. É um homem sem visão profissional, o que só se pode perdoar, repito, em um leigo. De charge o obcecado alfinetador também não entende.
É impossível ver o Obama na charge do Solda, a começar pelo conceito defendido nela: a insatisfação do governo brasileiro com os Estados Unidos. O texto da charge é claro nisso. Então, como é que o Obama iria dar uma banana para ele mesmo?
O que também deixa muito clara a intenção do Solda é o desenho da cabeça do macaco. O cabelo do presidente americano tem uma linha horizontal bem reta, o que não é o caso do macaco desenhado pelo cartunista, que tem uma linha curva que invade a testa. Observem os exemplos na imagem famosa da propaganda eleitoral de Obama e no seu retrato oficial, que coloquei ao lado do desenho do macaco onde o Amorim quer ver o Obama.
Levado pela necessidade de mostrar serviço em seu papel de alfinetador, Amorim não olhou com atenção o desenho. Mas aí também a experiência não permite que a gente se decepcione. Isso seria possível apenas se algum dia o Amorim tivesse olhado algo de forma atenta e profissional.
Porém, já sendo um ato consumado, a demissão do Solda pode servir ao menos para nos precavermos contra um clima muito perigoso que já se instala no país e que começa a por em risco a liberdade de expressão.
É a demonização do exercício do senso crítico, algo que vem sendo feito já há algum tempo pelo PT e seu governo e está nas vozes de várias lideranças e dos que escrevem de forma favorável ao poder. O que foi uma arma eleitoral e de propaganda hoje é usado de forma perigosa no debate de todas as questões, prejudicando o diálogo inteligente e a compreensão de qualquer problema ou atitude, inclusive as bananas que todo brasileiro tem o direito de dar.
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POR
José Pires