Nesses dias o fundador da editora Cosac Naify revelou que vai fechar sua empresa, fundada em 1997. Em quase vinte anos, a editora nunca deu lucro. E no geral seus livros são extremamente custosos. Só estão fazendo a última liquidação de estoque, para que esse projeto brilhante de Charles Cosac seja mais um fator de orgulho na história cultural do nosso país, apenas isso e ainda assim na memória de poucos, que é como anda a situação deste país. Charles Cosac é uma figura de impressionante vitalidade, dessas pessoas que passaram boa parte de sua vida fora do país vivendo com intensidade e acolhendo com atenção em seu espírito e no intelecto qualidades que depois procurou implantar em sua editora. Como se vê, um cara esquisito para o Brasil. Quem ele pensa que é? Talvez ele tenha escolhido o lugar errado para expor na prática suas evidentes qualidades existenciais, porque se tivesse sido feita num país europeu ou em qualquer outra sociedade realmente moderna a Cosac Naify seria um mito mundial. Mas, enfim, foi aqui que essa genial criação se deu e mesmo com seu final talvez ainda seja possível extrair qualidades na arte e no intelecto de que esta terra tanto precisa.
Esta conversa toda em torno do dono da editora que fechou tem o sentido de destacá-la na sua identidade exata, como uma obra autoral, como acontecia bastante até agora na área das editoras. No caso da Cosac Naify é bem mais marcante este fator individual. E a editora do Charles Cosac foi uma obra-prima. Tenho alguns livros dela, menos do que eu gostaria por causas financeiras, no entanto quando uma editora está na altura dessa criação de Charles Cosac sua influência não se estabelece apena com a posse do objeto físico que ela fabrica. O bom livro tem sempre emanações que vão além do objeto. A Cosac Naify teve um interação com a cultura brasileira e uma importância especialmente com os que fazem cultura e vivem disso na sua totalidade. É a ponta mais fina da pirâmide, de onde qualquer país irá extrair vitalidade para se construir e na qual as partes mais amplas terá sustentação de qualidade para viver a vida e fazer coisas. Uma sociedade avançada só é feita a partir da compreensão de que a base de sustentação da pirâmide tem que ser invertida.
Sua queda não pode ser vista no aspecto econômico, se é que isoladamente a economia seja um fator para a avaliação de qualquer outra coisa. Como esta editora tem toda uma interrelação com a alta cultura, com ligação com a indústria cultural e a criação artística, não temos aqui uma mera falência comercial. O salto admiravel proposto por Charles Cosac e interrompido no ar pode revelar problemas graves na construção de algo muito mais importante do que uns pontinhos no PIB, ainda que não sejam alcançados com sorrateiras pedaladas.
Pela característica muito especial em meio à banalidade e precariedade intelectual e criativa que virou a nossa indústria cultural, a falência da Cosac Naify merecia mais atenção. Essas portas fechadas são um alerta que está além do sinal vermelho da deterioração perigosa que beira o irremediável. E mesmo assim (ou por isso mesmo) este fechamento não vem tendo a devida atenção. As razões do descaso inclusive profissional no aspecto jornalístico e na recepção dos leitores estão exatamente na condição que levou ao fim da editora. Na morte da Cosav Naify estão causas e sintomas de uma doença que pode estar matando aquilo que teria de ser um caráter nacional e que já tinha boas bases estabelecidas por gerações anteriores. O que virou a nossa imprensa e o que é a internet brasileira pode dar a base para uma meditação sobre o que estou falando. Não sobrou ninguém? Além do mais, quem ainda mantém as tais antenas (que hoje em dia é até "cult" ter estilosamente aparadas) deve estar com uma dificuldade tremenda para brigar por um espaço dentre ampla cobertura das estrepolias forjadas nos bastidores daquele programa de calouros que traz como jurados três dos piores e mais chatos cantores da nossa abalada MPB — até que venha o novo BBB, é claro, ou um novo filme do James Bond.
A Cosac Naify já era pra ter ido fechada há bastante tempo. Só manteve-se viva pela insistência do dono, que parece ter muito dinheiro e com certeza uma grandeza espiritual que anda cada vez mais rara por essas terras. Charles Cosac se insere numa tradição brasileira de gente muito rica que vinha turbinando a capacidade de se fazer um país. Usando o próprio dinheiro para por em prática ideias mais amplas, geralmente aprendidas fora do país. Isso aconteceu por aqui em todo o século 20 e serviu até para aprendermos a posição correta de uma pintura moderna na parede. Tivemos ricos desse jeito bem menos que em outros países que subiram feito foguete, como nos Estados Unidos. Mas alguns apareceram e foram definidores em qualidade no que pode ser chamado de identidade nacional. Era gente como Joaquim Nabuco, um Paulo Prado, em cuja casa o grande Blaise Cendrars, escritor francês que veio ao Brasil na década de 20 nos dar uns toques, disse que almoçava todos os dias e “estava sempre enfurnado na sua biblioteca”. Ah, puxa vida, qual o rico brasileiro hoje em dia com uma biblioteca onde um homem como Blaise Cendrars poderia se enfurnar?
A esquerda pode espernear, mas o que de fato deu sustentação até agora ao país foi feito assim. Sem o indivíduo, na sua mais profunda percepção de empenho, liberdade e espírito, nada se faz. Algum esforço do Estado também ajuda, desde, é claro, que isso não seja focado em suporte financeiro desperdiçado com artistas e intelectuais de edital. O fim deste projeto visionário da Cosac Naify precisa ser visto na sua característica mais profunda, de demolição de valores essenciais para a feitura de um país e do desconsolo social que já beira o abandono da razão de viver. Só espero que essa análise não venha muito tarde, em memórias futuras sobre o rescaldo do que poderia ter existido um dia.
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POR José Pires