quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O nome certo de cada coisa


O ex-procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza fez um serviço para a democracia brasileira quando concluiu o inquérito do mensalão, entregue ao Supremo Tribunal Federal em março de 2006, ocasião em que ainda ocupava o cargo. Além dessa louvável contribuição para o nosso país, Souza deu um toque precioso para dar fim à linguagem do juridiquês que sempre foi a marca dos documentos que tramitam em nossos tribunais. O juridiquês é aquela língua obscura praticada por
 advogados, que torna impenetráveis processos, ações, petições e tantos papéis escritos que dão forma ao universo jurídico. Essa fala, muitas vezes permeada de um latinório pernóstico, é parecida com a linguagem rebuscada e imprecisa de outros setores, tal como acontece na economia, onde se impõe muitas vezes o economês como barreira para impedir o acesso do leitor a assuntos que mexem até com o pão que precisamos comer.

Quando li a apresentação do inquérito do mensalão assim que o material foi divulgado em 2006 logo vi que havia ali um estilo que contribuiria muito para dar um foco mais claro sobre os efeitos da corrupção no país. Veja no link o material na íntegra. Este documento histórico da nossa República é relativamente curto (136 páginas) e de uma facilidade de leitura que o torna um dos textos mais apreciáveis dos últimos tempos. Eu mesmo já o reli muitas vezes, até para não deixar brechas para chicanas jurídicas tramadas por quadrilheiros.

O linguajar simplificado que se viu nesses dias entre alguns juízes do Supremo Tribunal Federal que trataram de forma direta os crimes arquitetados contra a democracia, entre outras coisas chamando pelo nome certo de delinquentes os dirigentes nacionais do PT que compraram votos de deputados, tudo isso está na apresentação escrita por Fernando de Souza e entregue ao STF em 2006.O documento apresentado pelo então procurador-geral trouxe também uma afirmação que abriu espaço para jornalistas independentes se referirem com clareza ao papel do ex- ministro José Dirceu da Casa Civil de Lula, presidente da República enquanto o mensalão era posto em prática. O deputado cassado que foi parceiro de Lula antes até da fundação do PT já era definido por Fernando de Souza como o chefe da quadrilha do mensalão. Aquilo liberou o uso da palavra que define bem seu papel. Havia sempre a obrigação do uso das aspas para evitar que bancas de advogados muito bem pagos armassem processos que serviam de cala-bocas. Mas de qualquer forma isso permitia passar ao leitor o que estavam fazendo contra o país. Com a condenação caem as aspas, permitindo que o quadrilheiro que foi capitão da equipe de Lula seja citado como tal. Naquela época Fernando de Souza já fazia a denúncia da conspiração que a cúpula do PT tramou contra a democracia brasileira. Está muito bem definido na escrita direta do procurador o sentido político do trabalho sujo dos delinquentes: a perenização do PT no poder.Por ser um processo da mais alta instância jurídica do país, certamente a apresentação do inquérito do mensalão teve uma influência sobre grande parte do Ministério Público em todo o país. Eu mesmo peguei em mãos processos posteriores de procuradores estaduais que já vinham com linguagem mais aberta, narrando em linguagem comum os crimes contra o patrimônio público.A partir da análise do inquérito da Procuradoria-Geral da República, alguns ministros do STF deixaram de lado o juridiquês para falar em linguagem popular sobre a corrupção. Os assaltantes dos cofres públicos deixaram de ser tratados em razão de seus cargos ou do poder que ainda detém no governo federal. A começar pelo relator do processo, Joaquim Barbosa, quadrilheiros deixaram de aparecer na linguagem do tribunal como se fossem excelências, numa confusão que muitas vezes dava a impressão de estarem em nível parecido aos ministros da nossa mais alta Corte.Com o julgamento do mensalão o STF trouxe uma importante transformação de linguagem aos brasileiros. Tiraram as aspas do tratamento dado ao crime cometido por políticos. E isso não deixa de ser uma vitória para a igualdade. Afinal, quem rouba tem que ser chamado de ladrão em qualquer situação.


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POR José Pires

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Imagem: Capa do inquérito do mensalão. Distribuímos este material em praça pública em Londrina logo que ele foi entregue ao STF, em 2006. Como se vê pela arte que fiz na época, para evitar processos de bancas de advogados muito bem pagos, até na peça do procurador coloquei aspas por prudência.

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