quarta-feira, 19 de julho de 2023

João Donato e as dores da perda nos fingimentos no Twitter

Achei interessante as manifestações de alguns políticos no Twitter sobre a morte de João Donato. O músico morreu aos 88 anos nesta segunda-feira. Claro que no geral são protocolares essas mensagens de falecimento e também me parece que, sendo assim, deveriam se ater aos pêsames, sem que o político se alongasse em assuntos que não domina. 


Mas não foi assim com Donato, exatamente com ele, que, como sabe quem de fato conhece bem a música popular brasileira, é um músico de público selecionado, não só porque sua obra é de um nível elevado para os padrões da música daqui e do mundo, mas também pelo tradicional descuido que os brasileiros sempre tiveram com o que se faz de melhor na arte. 


Mas isso não tem que ser uma preocupação dessa maioria de brasileiros, que não tem interesse além do que lhes é enfiado pela goela por uma indústria cultural de má qualidade. A nossa música, que criou uma identidade especial para o Brasil no exterior, é um dos valores nacionais que, no ritmo dessa decadência avassaladora que toma conta do país, podem acabar logo mais. É grande a possibilidade de estar extinta muito antes de qualquer outra riqueza nossa, das tantas que andam numa pindaíba que parece irremediável.


Mas fiquei surpreso com a insuspeitada atenção que os políticos tinham com a música de João Donato. E eu que pensava ser um ouvinte especial. Até o vice de Lula, Geraldo Alckmin, veio a público informar a nação que Donato “projetou a Bossa Nova no mundo”. Seu parceiro na volta à cena do crime, o presidente, foi mais além, afirmando que o artista falecido foi “um dos gênios da música brasileira” e “um de nossos maiores e mais criativos compositores”.


Me surpreende bastante esse Lula de ouvidos atentos — ainda que numa linguagem de estagiário de caderno de entretenimento. Ele que, me lembro muito bem, dias depois de tomar posse no primeiro mandato, convidou dois músicos para festejar sua vitória na Granja do Torto, em Brasília, em um churrasco onde, com certeza deve ter tido muita cerveja e muita picanha. O problema é que os artistas eram Bruno e Marrone, mas, como costuma dizer quem aprecia coisa ruim, gosto não se discute.


Duvido que Lula, este presidente itinerante, tenha se aquietado uma vez que seja para ouvir alguma coisa de João Donato. Mais ainda, não acredito que ele seja capaz de identificar uma só música desse grande compositor. Alckmin também não tem cara de quem ouça João Donato ou qualquer outro compositor brasileiro deste nível, figuras geniais como Hermeto Paschoal, Egberto Gismonti, gente que elevou a música popular brasileira a patamares universais e talvez até por esta razão sejam ouvidos mais lá fora do que dentro de nossas fronteiras.


Outro que apareceu para louvar Donato foi o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ele mesmo, que costuma se dirigir aos brasileiros com um palavreado de advogado defendendo cliente salafrário no plenário de um tribunal. Estou falando de linguagem, nenhum juízo de valor. Neste caso, Pacheco mudou o discurso de forma polivalente e despejou chavões de caderno cultural. Para Pacheco, o músico foi “um artista versátil e talentoso, que explorou, com maestria, além da bossa nova, vertentes distintas de ritmos como poucos fizeram”.


Seria revelador e até muito engraçado se algum repórter perguntasse o que exatamente ele queria dizer ao escrever que Donato explorou “vertentes distintas de ritmos como poucos fizeram”. Claro que a explicação viria naquele jeitão doutoral de província, não só mineira como de tantos outros cantos do nosso interior, coalhado de conversas de bacharel. Imaginem este talento oratório focado numa discussão cultural sobre as “vertentes distintas” exploradas por Donato na sua alta potência criativa. O negócio iria viralizar.


Muitos falaram na genialidade desse músico e nisso acertaram, ainda que por acaso, pois qualquer um é tratado como gênio por aqui. No Brasil, esta terra mucho loca, o conceito de “gênio” é usado sem critério algum, aparecendo, às vezes, como mera ocupação de espaço no texto de quem não sabe do que fala ou para bajular artistas que na sua arte fazem no máximo um pouco mais do que a média. Na música popular, para ficarmos no tema, quem é gênio de fato raramente fica famoso. Hoje em dia, muitos estão com muita dificuldade de viver decentemente de seu trabalho. Este tal de “gênio” também será pouco escutado, até por ser fora do normal, o que incomoda ouvidos banais.


O gênio não é só quem domina tecnicamente seu ofício e faz muito bem o trabalho. Nada disso. Daí que um músico popular pode fazer coisas muito elogiáveis, mas que não merecem muito mais do que serem ouvidas com muito gosto. Gênio é quem ultrapassa a barreira do normal, sendo que, às vezes, sabe do ofício quase que o mesmo de muitos dos seus colegas. O que ele tem a mais é a capacidade do uso do conhecimento para dar um passo adiante. É isso que João Donato fez na vida, a dele e a nossa, uns poucos que estivemos por décadas e até agora na escuta.


Então, de fato Donato foi um gênio, como até o Lula escreveu. Mas o que será que o petista sabe disso na área musical ou em qualquer outra da cultura? Talvez ele tenha buscando informações com Valeska Popozuda, que teve ao seu lado no palanque, como parceira da salvação da democracia. Ou será que perguntou ao Bruno? Ou ao Marrone? O cara está cercado de gênios. Mas a verdade é que é tudo um baita palavrório, na ostentação de falso conhecimento e do uso equivocado do Twitter ou de qualquer outro meio de comunicação, mais pela manipulação do que no real diálogo com as pessoas. É um dos problemas ao fingir completamente, conforme dizia o poeta. Acontece também do sujeito achar que sabe algo além do que o próprio fingimento.


Lula é ruim de ouvido e tenho certeza de que a maioria dos políticos também são. Mas ainda mais, estão cercados por uma assessoria que tem dificuldade no equilíbrio entre o que deve ser protocolar numa nota de pêsames e a exposição do ponto de vista de quem assina a mensagem. Daí essa patacoada, com esse fingimento de conhecimento que causa até vergonha alheia.

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Por José Pires

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