sábado, 29 de janeiro de 2011

Ney Matogrosso: um transgressor faz 70 anos

O cantor Ney Matogrosso faz 70 anos em agosto. Estamos mesmo todos ficando velhos, mas alguns aparentam menos que os outros e isso não é só uma questão física. Ney não muda nas fotos. E é bom ver também que o vigor artístico do grande artista permanece o mesmo. E olhem que ele enfrentou barras bem difíceis na vida.

Numa entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo de hoje, ele se define como um sobrevivente, no que tem toda razão. Perdeu mais da metade dos amigos, levados pela Aids, porém, além disso, colocou em cena discussões muito difíceis de serem encaradas até hoje no Brasil, quando mais nas décadas de 70 e 80, quando o país era fechado para qualquer questão que ficasse próxima do assunto sexo.

Quando Ney surgiu, como o centro do conjunto Secos e Molhados, no Brasil as revistas não podiam publicar fotos de mulheres nuas, nem com as poses mais recatadas. O jornal O Pasquim escandalizava publicando na capa fotos de mulheres de tanga. Imaginem então como era com o que Ney fazia nos palcos. Os shows do Secos e Molhados tinham um conteúdo sexual bastante explícito. É espantoso que eles não tenham sido mortos por algum reacionário numa cidade do interior do Brasil. Ney conta que foi bastante ameaçado.

Esse componente sexual opressivo da ditadura militar está sempre em segundo plano nos textos sobre o período. Isso quando não é totalmente deixada de lado essa característica moral do golpe de 64, que teve muita influência no apoio à ditadura por uma classe média bastante temerosa do sexo.

A dificuldade em ser franco neste assunto num país que sempre foi muito conservador, mas que, além de tudo, era dominado por uma ditadura militar, fica bem explicada numa resposta do cantor ao jornalista, falando como eram publicadas declarações suas na imprensa da época: “Quando me perguntavam sobre sexo eu respondia tudo. Aí, quando eu ia ler no jornal, em vez de sexo estava escrito amor. ‘No amor, ele é liberal...’ Mas eu não tinha falado de amor, tinha falado de sexo”.

O Brasil era fechado para tudo. Um artista tinha que ter muita coragem para sair pelo país afora, até em cidades das mais machistas do nosso interior, levando a pulsão agressivamente erótica que era a base da arte de Ney. Era mais fácil falar em política naquela época dura do que fazer o que ele fez num Brasil que era ainda mais opressivo no comportamento do que na política.

Ainda não foi equacionado de forma clara o papel de Ney Matogrosso na nossa cultura, para a qual trouxe uma força que vai além da sua reconhecida capacidade como cantor.

Ney sempre demonstrou uma inteligência notável na construção de sua carreira. Um cantor se eleva da média não só pela qualidade vocal — que nele é bastante — mas pela capacidade de escolha de caminhos artísticos. E isso ele soube fazer muito bem.

Vem aí um documentário sobre a vida de Ney, dirigido por Joel Pizzini. Tomara que seja uma obra que ajude a entender a dimensão dele para a nossa cultura e não fique só na exaltação do formidável cantor que ele sempre foi.


Com homem ou mulher, tudo igual
Na entrevista ao Estadão publicada hoje, tem até uma fala de Ney que pode ajudar bastante a combater essa divisão entre sexos e raças que alguns buscam impregnar na política brasileira, especialmente reforçada na exploração do fato de termos uma mulher na presidência da República. Sabemos que é apenas para faturar uns votos, mas é uma leviandade que pode atrapalhar muito.

O cantor tinha a ilusão de que um relacionamento entre homens seria diferente de um relacionamento entre homens e mulheres. Mas logo ele viu que os conflitos são todos parecidos. E é claro que isso vai além do plano sentimental e ainda bem que é assim, pois de outra forma não haveria uma igualdade a ser conquistada, não é?

É curioso, pois numa entrevista feita há alguns anos atrás o ecritor Aguinaldo Silva também confessava um equívoco parecido que viveu na sua juventude, com a diferença que ele pensava que os homossexuais fossem todos progressistas.

É claro que ele viu logo que isso era um absurdo. Mas não é um absurdo menor do que pensar que possa haver diferenças substanciais na condução política entre um homem e uma mulher, um branco e um negro ou até entre um homossexual e um heterossexual.

Mas vamos ao que Ney diz: “E eu caí na triste realidade de que tudo é igual, homem com mulher, mulher com mulher, homem com homem. É tudo igual. Muita coisa rolaria água abaixo se na verdade todos se revelassem como são. E eu estou falando da favela ao Palácio do Planalto”.

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POR José Pires

4 comentários:

Odília Milano disse...

Grande Ney Matogrosso. Artista maior, realmente sua contribuição à nossa cultura ainda não foi devidamente apreciada.

Shirley Michieli disse...

Ney de Sousa Pereira, nosso querido Ney Matogrosso, fará 70 anos somente no dia 01 de agosto do corrente ano!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

José Pires disse...

Grato, Shirley Michieli. Já está retificado. Por distração joguei o aniversário do cantor para a próxima semana. É em agosto!

Gregório disse...

Claro que na ótica de homens inteligentes e bem informados como você, Ney Matogrosso é, sim, reconhecido como uma peça importantíssima (e fundamental) da cultura brasileira. Para a gde maioria dos críticos e historiadores de renome, Ney foi, e ainda é, um divisor de águas, inovando, provocando e desafiando, tanto no repertório, como no comportamento cênico. Mas, talvez, até pela excelente qualidade de seu repertório, e por vivermos num país ainda muito machista e hipocritamente conservador, os meios de comunicação não dêem ainda a atenção que Ney mereceria. E aqui, c/ a população totalmente emburrecida pela péssima qualidade da televisão, Ney acaba visto como um cantor mais elitista, mesmo tendo qualidades que são apreciadas por todas as idades e classes sociais.
Parabéns pela análise e pela qualidade de seu texto, José Pires, brilhante. Um abraço.