segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O enredo fatal da mistura de religião, poder financeiro e política na igreja da deputada Flordelis

A Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro concluíram o inquérito sobre a morte do pastor Anderson do Carmo, executado na garagem de sua casa com mais de 30 tiros em 16 de junho de 2019. Ele era casado com a deputada federal Flordelis (PSD-RJ), que foi indiciada como mandante do crime, ocorrido instantes depois dos dois chegarem juntos à casa em que moravam com a família, em Niterói. O crime aconteceu em um domingo, quando voltaram de uma confraternização em uma lanchonete.

 

Onze pessoas estão envolvidas no assassinato e nove delas foram presas. Foram para a cadeia cinco filhos e uma neta do casal. Um delegado fez as contas do enredo macabro: “Temos aí 11 pessoas respondendo criminalmente, levando em conta que a família são 55, nós temos 20% da família envolvida nesse crime”. A explicação é do delegado Antônio Ricardo Nunes, diretor do Departamento Geral de Homicídios e Proteção à Pessoa (DGHPP) da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.

 

Os 55 filhos são em sua maioria adotados. Três dos indiciados são filhos biológicos do pastor assassinado. Flordelis só não foi presa porque tem imunidade parlamentar, que permite a prisão apenas em flagrante por crime inafiançável.

 

Ela vai responder por homicídio triplamente qualificado (por motivo torpe, meio cruel e impossibilidade de defesa da vítima), associação criminosa, falsidade ideológica e uso de documento falso. Sim, neste país um parlamentar tem imunidade que o protege dessa porção de crimes. Segundo o G1, a conclusão do inquérito é que Anderson foi morto por questões financeiras e poder na família. Os dois comandavam uma igreja que estava em crescimento e era ele que controlava todo o dinheiro da organização.

 

Por esta conclusão da investigação da polícia e do MP, afinal o crime se enquadra na luta pelo comando neste universo obscuro que envolve relações políticas, poder pessoal e muito dinheiro, na proliferação de igrejas neopentecostais, algumas que na verdade mal podem ser qualificadas como seitas, de tão desarranjadas que são do ponto de vista teológico.

 

A igreja da deputada, que recebeu seu nome, teve origem com sua mãe em 1990, juntando pessoas para rezar na própria casa. A partir de um processo de ampliação tocado por ela e o marido assassinado, a igreja da deputada já estava com uma sede e cinco filiais no Rio de Janeiro. Duas foram fechadas depois do crime. Na época da morte de Anderson do Carmo, o casal construía uma sede com capacidade para cinco mil pessoas.

 

Flordelis tinha planos ambiciosos, além de já estar bem posicionada politicamente. Fazia parte da base política de Jair Bolsonaro, como deputada do partido comandado por Gilberto Kassab, cacique político com trânsito em vários governos, como os do PT e do governador João Doria, atualmente em negociações para ampliar sua participação no governo Bolsonaro.

 

A deputada é amiga de Damares Alves, ministra de grande prestígio pessoal junto ao presidente. Flordelis tinha uma grande influência política na área metropolitana de Niterói e já trabalhava para indicar uma pessoa de confiança nas eleições deste ano para prefeito de São Gonçalo, com 330 mil habitantes.

 

Alguém duvida do sucesso político de Flordelis se ela não fosse implicada neste crime? Com certeza estaria tendo participação fulgurante na chamada “Bancada da Bíblia”, claro que na qualidade do brilho deste grupo de políticos, cuja base moral pode ser conferida pelas bandeiras de um reacionarismo repugnante e pela condução por canais políticos usados quase que só em favor de interesses diretos de lideranças pretensamente religiosas, que na prática agem como proprietários privados, sem compromisso realmente coletivo com o interesse de uma comunidade religiosa.

 

A relação desses políticos na história recente vai de Fernando Collor a Bolsonaro, aliando-se com todos, inclusive Lula e Fernando Henrique Cardoso, dois presidentes que embora tendo sido eleitos para dar alguma ordem e decência neste tipo de relação política, agiram apenas para criar uma impressão artificial de que a coisa se desenvolve de forma, digamos, republicana. O período petista foi o que mais concedeu poder político para essas figuras que usam politicamente a fé das pessoas, manipulando em proveito próprio especialmente os mais pobres.

 

Não tem campanha eleitoral em que os templos desses auto-intitulados “pastores” não se tornem palanques eleitorais, com a aceitação de candidatos das mais diversas posições políticas. Qualquer um serve, desde que depois atenda aos chefes das igrejas. A sociedade civil segue procurando fazer de conta que não sabe do risco grave dessa mistura feita com toda má-fé entre religião e política, enquanto de forma sombria vai-se fortalecendo, gradativamente e em bloco, o peso dessa cultura na condução política e administrativa do país.

 

O tratamento dado a essas figuras maléficas é de uma condescendência perigosa, passando por cima de regras, até de leis e com certeza sem a atenção devida à obrigação do respeito à liberdade do indivíduo, além de no geral fechar-se os olhos até ao caráter totalmente anti-ético de muitas das ações. Com isso eles vão ganhando força, de forma muito parecida com o que se deu por décadas com um político desqualificado como Jair Bolsonaro, favorecido pela desatenção coletiva aos seus malfeitos, que nos conduziu a todos a uma condição terrível, como agora se sabe.

 

Pois o Brasil que se recomponha moralmente e na sua cultura, atentando melhor para a prevenção ao risco de um dia acordar com um país sob o controle dessa visão do atraso e da falta de respeito à liberdade, talvez até com um presidente da República sob as ordens diretas de uma dessas igrejas de fundo de quintal.

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POR‌ ‌José‌ ‌Pires‌

 

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Imagem- A deputada Flordelis durante um café da manhã de parlamentares com Jair Bolsonaro no dia 30 de maio de 2019; segundo a polícia, cerca de duas semanas depois seu marido foi morto a mando dela


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