segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Lula e os usos e abusos do poder

Libertado da cadeia por uma nova interpretação jurídica do STF — contrária inclusive a outra, anterior do supremo —, apoiado por figuras políticas e da economia que no passado até bem próximo foram tratadas por ele como inimigos do povo e aliados dos mais ricos, Lula parece que está no reino dos inimputáveis. O chefão petista atravessou os dois turnos da campanha com o aval moral da imprensa e foi claramente ajudado pela boa vontade do TSE e até do STF. Teve até censura que o favoreceu. No segundo turno chegou a ser determinado que não se podia falar de certas coisas do seu passado, um fato inédito nas eleições brasileiras depois do fim da ditadura militar.


Claro que isso foi um empecilho complicado para a campanha do adversário do PT, mas por que se preocupar com liberdade de opinião e isonomia numa eleição quando do outro lado estava Jair Bolsonaro, não é mesmo? Não devia ser desse modo, pois não se relativizam direitos numa democracia, mas foi desse jeito que o processo eleitoral andou. E Lula foi eleito praticamente com um cheque em branco, naquela onda da luta “antifascista”, que todos devem se lembrar muito bem.


Pois ele já está revelando que não vai deixar de abusar dessa aparente abertura para extravasar limites éticos, pelos quais ele nunca mostrou respeito, como foi bem demonstrado no mensalão e depois no petrolão. Nesta segunda-feira, Lula partiu em viagem com uma comitiva para o Egito. Foi de jatinho, um Gulfstream 600 de propriedade de um empresário. Já seria preocupante a dúvida sobre quem estaria pagando os custos da comitiva, afinal o petista ainda não é o presidente do nosso país, mas a viagem de um presidente eleito em um avião particular deveria ser vista como um aceno de liberação geral desta promiscuidade entre os negócios públicos e empresários de proximidade suspeita com maioriais da política.


Mas não é com rigor que Lula vem sendo tratado neste caso. Continuam passando a mão na cabeça do velhaco. Mantém-se aquela complacência que houve durante a eleição, quando a cada cretinice sua ou o atropelo da decência, jornalistas e comentaristas políticos se prestavam a dar conselhos para ele se moderar. Agora, no uso do avião do empresário, já apareceu jornalista dando espaço para figuras do entorno do presidente eleito, afirmando que foi ingenuidade dele. Pois é isso: agora o “inocentado” é também ingênuo.


O avião decolou nesta manhã do aeroporto de Guarulhos e só retornará na sexta-feira. O valor médio do frete é de 10 mil dólares por hora. Mas tem outras implicações nesta viagem. A aeronave é do empresário José Seripieri Junior, que já foi dono da Qualicorp. Hoje ele é dono da Qsaúde. Seripieri foi alvo da Lava Jato e chegou a ser preso em junho de 2020, na Operação Paralelo 23, que investigou o então senador José Serra (PSDB-SP) por suposto caixa dois de R$ 5 milhões nas eleições de 2014.


As investigações deste caso foram suspensas pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, alegando uma questão jurídica como aquelas tantas que serviram para livrar políticos de complicações, inclusive o próprio Lula. Toffoli entendeu que houve usurpação da competência constitucional do STF para julgar um senador, porque a investigação ocorreu na primeira instância. Ah, sim: o defensor de Seripieri é o advogado criminalista Celso Vilardi, destacado membro do Grupo Prerrogativas, de advogados que apoiaram com entusiasmo a eleição de Lula, inclusive fornecendo argumentação política e jurídica em seu favor.


No ano da rápida passagem do dono do Gulfstream 600 que levou Lula para o Egito a Lava Jato já estava minguando, por uma coincidência interessante logo que finalmente chegou aos tucanos. Daí, como os brasileiros assistiram, formou-se aquela frente ampla pela impunidade, que juntou bancas milionárias de advogados, políticos e empresários. A aliança foi fortalecida depois, no apoio à candidatura do petista.


Seripieri fez delação premiada, pagando também uma multa de R$ 200 milhões. Na delação, ele entregou o senador Renan Calheiros, apoiador de primeira hora do petista. Lula já havia usado antes o avião de Seripieri e até se hospedava na casa do empresário em Angra dos Reis. O empresário, que na intimidade é conhecido como Júnior, é próximo também de Geraldo Alckmin. Outro que goza da sua amizade é Alexandre de Moraes. Quando era ministro da Justiça do governo de Michel Temer, o ministro do STF frequentava a casa de Júnior em São Paulo, nos Jardins.


Viram como rende uma viagem ao Egito? Não existe nada de inédito nos entremeios dessa viagem. O que tem de novidade é que Lula não está mais vendo a necessidade nem de fazer as coisas de forma discreta. E não dá para duvidar que esta sua segurança tem uma boa sustentação no encadeamento da política brasileira — e da Justiça — na atualidade.

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Por José Pires

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