segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Hilda Hilst e Mário Schenberg: um poema à bela amizade

A leitura traz umas descobertas prazerosas, que pode ser inclusive a revelação sobre algo legal de ser lido, uma coisa nova que tem muita relação com o que somos, mas que nem sabíamos que estava escrita. Foi o que aconteceu comigo, relendo nesses dias um livro de entrevistas da Hilda Hilst, deliciado com franqueza dessa grande mulher e da forma mágica e muito inteligente dela ir respondendo às perguntas, sempre de espírito aberto, fazendo às vezes a gente dar até umas boas gargalhadas. A maioria das entrevistas recolhidas neste livro mantém relativamente intacto seu jeito de falar, com ela revelando seus encantamentos, entremeando com histórias muito boas e também alguns palavrões, senão não seria a Hilda.

Conheci Hilda quando morei em Campinas, na década de 80, e estivemos algumas vezes juntos, quando tivemos boas conversas que se estendiam até a madrugada na famosa “Casa do Sol”, lugar fora da cidade, onde ela vivia. Hilda é uma escritora que estou sempre relendo, até pelo fato da sua obra ter como poucas uma capacidade inspiradora e também ser aquele tipo de texto com o qual nos revigoramos para nossa própria atividade, seja da escrita ou qualquer outro trabalho. Pois, numa dessas entrevistas de que falei, dada ao Suplemento Literário de Minas Gerais, falando da sua amizade com o físico Mário Schenberg, ela lembrou que havia feito um poema para ele, depois publicado “em algum lugar”. Schenberg é uma figura inesquecível da universidade brasileira (morreu em 1990), que sempre teve uma ligação muito especial com o meio artístico.

Hilda, que nos deixou em 2004, foi sempre muito fixada na questão da mortalidade. Como ela mesmo dizia, uma de suas preocupações era com a “terrível desagregação disso tudo que nós somos, pensamos, amamos”. Ela tinha uma tese interessante sobre isso. Dizia que parece que a gente constrói uma alma. Segundo o que contou, Schenberg não só acreditava na imortalidade da alma, como acreditava em vidas passadas. Para ele, os dois haviam vivido no Egito. Hilda havia sido uma sacerdotisa amiga dele. O físico acreditava nessas coisas, mas não falava nada na universidade. “Tenho medo de perder meu emprego”, ele dizia. O misticismo de Hilda a levou até a tentar comunicar-se com os mortos, em experiências feitas em faixas de rádio sem emissoras. Ela me garantiu que obteve contato, mas naquela casa realmente tudo era possível.

Foi a partir dessas histórias que veio a lembrança sobre o poema para Schenberg, o que levou o entrevistador a perguntar como era o físico. “Era um homem maravilhoso, capaz de explicar pra gente as teorias do Einstein com a maior simplicidade”, ela disse. Mas e o poema? Na edição do livro até informam em nota de rodapé que o poema saiu na “Revista da USP”, mas se fosse numa época pré-internet imaginem a dificuldade que seria para localizar esta obra. Mas hoje em dia é bem mais fácil resolver um problema desses. E quem sabe o que procura, acaba encontrando.

Nem vou dizer que o poema é praticamente inédito porque infelizmente Hilda Hilst permanece sendo uma autora com poucos leitores, mesmo num país como o nosso, com índices baixíssimos de leitura. Coisas do Brasil, onde conseguiram tornar a educação e a cultura pior do que era quando esta grande autora estava viva. Porém, mesmo para mim o poema era inédito. Pois então, consegui encontrá-lo e aí está. É uma boa oportunidade de apreciar o encontro de dois seres muito especiais que passaram por este planeta.
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POR José Pires

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Mario Schenberg: Amado Alguém

Disse-lhe um dia: aquela te ama.
Deita-te com ela. Ando cansada
De lhe ouvir confissões a toda hora.
Os olhos cerrados, a fala mansa
Respondeu-me: "E como posso?
Se o que ela pintou de mais humano
Foi uma poça d'água..." Era pintora aquela.
Disse-me um dia: "Vivemos juntos. No Egito.
Uma vida antiga. Sabias?"
Não.
E falávamos de possíveis universos
Das infinitas matérias. Ele dizia:
"Não contes a ninguém... mas acredito
Acredito, acredito."
Hospedou-se em minha casa
Quando o perseguiam. Às vezes saía à noite:
Chapéu, charuto, casaco. Ríamos
Dos disfarces absurdos: tão ele.
Todos o reconheciam.
Juntos inauguramos
Um ciclo de palestras na Unicamp:
Física. Poesia. Rigor. Magia.
Amado Mário. Lúcido ao infinito.
Veemente, Humilde.
Igual a todos os gigantes.
No silêncio é que nos entendíamos.

Hilda Hilst
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