Pelos números que chegam da Bolívia, a eleição presidencial traz de volta ao poder Evo Morales, com a vitória de Luis Arce, que é seu poste. A própria presidente interina Jeanine Añez reconheceu que o resultado deu a vitória a Morales e seu partido. Pesquisa de boca de urna mostra que Arce foi eleito com 54% dos votos, contra apenas 31,5% de seu principal adversário, Carlos Mesa.
O resultado não é uma surpresa, pois seria mesmo difícil vencer um partido com fortes raízes populares, o Movimento pelo Socialismo (MAS), que esteve 14 anos no governo desenvolvendo um projeto político sem nenhuma abertura para a alternância no poder. Morales foi mudando as regras, até tentar ao abuso de quarto mandato para ele próprio.
Arce participou de todo este processo, que sob o comando de Morales estendeu sobre a Bolívia um domínio político quase absoluto, usando a organização e experiência adquirida pelo mesmo MAS, em décadas de trabalho político, com intensa penetração entre os mais pobres, sabendo inclusive combinar com habilidade o discurso político com o imaginário ancestral daquele país, no mito das civilizações anteriores e na relação com a colonização espanhola.
O candidato vencedor é tido como responsável pela política econômica durante o período de governo de Morales.A campanha de Arce teve a coordenação de Luis Arce, que foi vice-presidente de Morales e é o principal ideólogo do grupo do ex-presidente.
Não acho que seja um exagero lamentar pela pobre Bolívia, não só pela vitória de um grupo com o velho espírito caudilhesco da América Latina, agora encarnado por um índio boliviano com colar de folhas de coca no pescoço. O próprio candidato que ficou em segundo lugar era um político da antiga. Não dava para ter muita esperança de algo melhor com Carlos Mesa. Não dá ter expectativas positivas com o grupo de Morales, assim como não caberia esperar algo efetivamente de qualidade com a vitória da oposição. Além disso, tudo indica que se infernizariam mutuamente seja quem fosse o ganhador.
Mesa já foi vice-presidente, tendo assumido o cargo quando o titular, que não importa o nome, renunciou em meio a graves distúrbios em todo o país. O próprio Mesa foi também obrigado a renunciar em 2005, depois de conflitos populares com 80 mortos, com protestos e greves, causados exatamente pelo mesmo MAS, comandado por Morales, que preparava o caminho para subir ao poder.
No final, a única vantagem até o momento é que o MAS foi obrigado render-se ao menos formalmente ao ritual da democracia, que é óbvio que também não é grande coisa na Bolívia. O plano era ter Morales em um quarto mandato consecutivo, porém ele foi obrigado a renunciar em novembro do ano passado. Vamos ver como é que fica, mas também é evidente que permanece com ele como um poder pessoal a ponte da relação com o eleitorado, especialmente os pobres, que nesta América Latina é quase todo mundo.
A esquerda da América Latina vai se animar, já que esse pessoal é ligado nessa mistura de populismo com toques socialistas. A direita vai dizer que são comunistas tomando o poder, uma teoria que me parece que Lênin não aceitaria, além de que o comunismo na Bolívia animaria nem o Fidel Castro dos velhos tempos, pois o país não tem dinheiro para mandar pra Cuba.
Mas o PT e seus puxadinhos tentarão lacrar, que é só isso que fazem hoje em dia. O índio Morales assenta bem na permanente ilusão histórica da esquerda sobre um idílico mundo pré-hispânico, de povos criadores de uma sofisticada civilização, violentada depois pela maldade vinda da Espanha.
Nesta história nunca se fala nas incessantes guerras de conquista, no domínio brutal de um povo sobre os outros, em sacrifícios humanos em rituais religiosos, fatos tratados como meros detalhes. A teoria histórica é sempre de uma cultura destruída por bárbaros vindos de caravelas de outro continente, mas, bem, como deveria dizer Eduardo Galeano antes de escrever livros que antes de morrer ele mesmo admitiu que eram equivocados, ninguém é perfeito.
O triste é que o modelo que surge com esta eleição reprisa a incorrigível dificuldade de setores progressistas e ainda mais da esquerda de estabelecer sistemas partidários modernos e eficientes, abertos à democracia e a organicidade política. Sempre tem um caudilho por detrás, seja no espírito ou na presença material, como pode-se ver na Argentina com os Kirchner ou no Brasil, com o mandonismo de Lula sobre seu partido e o destino da esquerda brasileira.
Eu disse “pobre Bolívia”, como um lamento sobre um povo empacado no atraso cultural e técnico de classes políticas e dirigentes que não entenderam nada lá atrás, no século vinte, obrigando todo um país a bater a cara na porta de entrada do Terceiro Milênio. Mas, ora, o mesmo lamento serve para nós todos aqui em nosso pobre Brasil, especialmente agora que praticamente toda a classe política — esquerda com direita, em união estável com os porcalhões do centrão — parece ter abraçado de vez o modelo da plutocracia, onde dinheiro enfiado nas nádegas é mera formalidade.
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POR José Pires
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