terça-feira, 9 de novembro de 2010

Humor a favor do pior

O adesismo no Brasil contamina praticamente tudo. Perdeu-se o sentido crítico até em atividades que teriam, ao menos na teoria, que ser independentes. Hoje em dia anda tudo misturado.

Até o humor não toca mais de fato nos assuntos de forma crítica, de forma que os políticos devem até estar gostando das charges que fazem com eles. Dos programas de humor da TV eles devem gostar ainda mais.

Não costumo ver televisão, mas hoje, com a internet, felizmente é possível ficar informado sem perder tempo na frente da TV à espera dos programas. É lamentável o que andam fazendo em programas de humor, como o Pânico e o CQC. O humor na televisão brasileira acabou descendo para níveis ainda mais baixos que os chamados programas de baixaria.

Primeiro, criam uma confusão entre informação e entretenimento do mais baixo nível. Constrangimento e moças boazudas são os ingredientes mais usados. E as pessoas pensam que é jornalismo o que eles fazem, perseguindo artistas e políticos e buscando extrair humor do constrangimento causado de forma grotesca por seus integrantes munidos de microfones e agindo como se fossem repórteres.

Este é um problema grave. Nesta confusão a imprensa acaba sendo depreciada. Nas revistas e nos sites a internet existe uma questão aparecida, com a invasão da fofocas com celebridades editadas como se fossem noticiário sério. Na internet é ainda pior que nas publicações impressas, porque pelo menos nesta área a fofocagem é feita em revistas especializadas neste tipo de besteira.

Já nos sites acaba havendo uma mistura, de forma que fica difícil saber onde termina o jornalismo e começa a construção de textos sensacionalistas e muitas vezes até inventados. Isso é jornalismo? As pessoas que fazem essas coisas podem até ter o diploma, este canudo que o corporativismo sindical luta para tornar obrigatório, mas esta é uma atividade bem longe do jornalismo, ainda que não fiquem claras as diferenças.

Os programas de humor avançam ainda mais na quebra desses limites e não é sem querer. A confusão deliberada reforça o efeito desejado. Afinal a ambiguidade é uma ferramenta muitas vezes essencial no humor. Mas o que querem de fato esses programas de humor? Bem, não querem outra coisa além de fama e dinheiro.

E o resultado do que eles vêm fazendo, ao contrário de reforçar a crítica aos políticos e à cultura da celebridade que sufoca a arte no Brasil, acaba na verdade é banalizando estes assuntos. Reforçam a cultura da celebridade e dão um tom jocoso ao pior da política brasileira.

Com este método acabam até puxando para baixo gente com uma história um pouco melhor que a maioria. Logo no início da eleição para presidente da República vi o candidato Jose Serra sendo entrevista por uma moça do Pânico, uma descendente de japonesa que faz o papel de boazuda tola. O Serra chegou a dançar uma dessas bobagens que eles inventam para se fazerem de engraçados.

E se o Serra se negasse? Bem, poderia ter se envolvido numa polêmica terrível e acusado de ter má-vontade, ser mal-humorado, ou até de coisas piores. É um clima de chantagem que beneficia esse tipo de porcaria. Mas como a gozação é feita sem nenhum objetivo crítico fica tudo igual.

E esta ilusão de que tudo é igual acaba favorecendo os patifes. Andei vendo alguns programas do CQC com Paulo Maluf. Nem se fossem dirigidos por algum marqueteiro do próprio Maluf ele teria tamanho benefício. O ex-prefeito de São Paulo é uma figura tarimbada nisso. Com certeza ouviu muitas vezes do Duda Mendonça o conselho de procurar aproveitar a rejeição à políticos do seu tipo, manipulando o sentido real da sua imagem.

O Maluf cara-de-pau, que abraça até quem acabou de fazer uma crítica pesada, é um personagem que não permite ganhar a disputa para um governo estadual. Mas dá de sobra para uma eleição de deputado. E é óbvio que ele navega nesta onda. Está vivendo disso.

Programas como o CQC são ótimos para este fim. É um caso interessante de simbiose onde existe um benefício quase natural entre o humorista e o criticado. Maluf é um parasita dos cofres públicos. Suga mesmo. Mas com programas como o CQC é outra a biologia. A nutrição é mútua.

Um encontro ocorrido entre Maluf e Ernesto Varela, nesse último sábado, revela bem a harmonia dessa convivência. Os dois se abraçaram. É uma compreensão de igual para igual do sentido prático da encenação. Será que assinaram contrato?

E se alguém acha que estou exagerando quando digo que estamos numa época de adesismo, tente imaginar o Maluf abraçado a um membro do semanário O Pasquim na década de 70 (o Ziraldo não vale). Impossível, não?

Não tem chargista que vai para Brasília receber comenda de Ordem ao Mérito dada pelo Sarney? Ah, tem até cartunista que aceita a bolsa-ditadura do Lula. Pois do mesmo modo oportunista, o CQC pode muito bem fingir que critica o Maluf apenas para aproveitar a audiência que ele pode atrair. Não importa que o humor falsamente crítico na verdade humanize esta figura nefasta da política. O que interessa é faturar.

Varela e Maluf se encontraram em um camarote do GP Brasil e Maluf abraçou Varela dizendo: “Eu adoro o CQC”. O apresentador devolveu o cumprimento: “E eu adoro o senhor”.

É claro que, espertamente, Varela tenta escapar pela ambigüidade que o papel de humorista dá à sua fala, mas seja qual for o sentido real do que disse, o resultado é sempre o de criar uma simpatia em relação a Maluf.

Pode parecer que existe um tom irônico no “adoro” de Varela, assim como no “adoro” de Maluf, como se eles sentissem o contrário do que falam. E é muito bom para os dois que as pessoas pensem assim. Mas aí seria viajar na linguagem. Não acredito que haja outro sentido nesta amabilidade mútua e pública. É no literal: Varela e Maluf se adoram mesmo. E eles têm bons motivos para isso.
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POR José Pires

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