sábado, 26 de fevereiro de 2011

Lobão, a única voz inconformista do rock brasileiro

Ao ler qualquer entrevista do compositor Lobão tenho sempre a impressão de que gente como ele faz falta em todas as áreas do conhecimento e das artes no Brasil. Na política, então, faz uma falta danada a sinceridade que ele põe em tudo o que fala.

O engraçado é que em qualquer país em que haja um mínimo de coerência nas relações políticas quem acaba fazendo o papel que Lobão exerce na música é a extrema-esquerda, representada aqui por partidos como o Psol. Porém, até essa nossa esquerda extremada se aquieta nos momentos cruciais e se acomoda no clima de patota que a maioria dos brasileiros adora. Pois não foi o que aconteceu agora na eleição da Dilma Rousseff, quando ele votaram nela no segundo turno? Pois foi.

E na última eleição ocorreu até aquele grave desvio de personalidade do candidato da oposição, José Serra, quando ele começou a elogiar Lula, não foi? Pobre do Serra. Ainda bem que passou logo, mas aquilo não foi só um defeito pessoal dele. É parte do caráter nacional, um traço que parece indissolúvel. É coisa do brasileiro. Do homem cordial já bem decodificado por Sérgio Buarque de Holanda lá atrás, nos anos 30.

Tudo se ajeita e o espírito crítico vai sendo deixado de lado. É a velha dificuldade de fazer qualquer coisa de forma impessoal, da preferência pelo resguardo nas relações de amizade. A coisa é tão forte que podemos dizer que o velho Buarque foi grande ferreiro com espeto de pau em casa. "Raízes do Brasil" é um aviso do mal que este traço patrimonialista e acrítico da nossa nacionalidade poderia fazer com o país. É evidente que Lula nunca leu este livro, mas tem seguido na sua carreira exatamente o que está descrito ali e implantou isso como ninguém havia feito antes no governo federal. Faz o contrário do que pede o velho Buarque. E quem é o maior defensor dos feitos de Lula, do sindicalismo ao poder presidencial? Isso mesmo, o filho mais famoso de Sérgio Buarque de Holanda, o Chico.

Mas voltemos ao inconformista do rock. Às entrevistas do Lobão,então. Com o lançamento de sua precoce biografia ele tem falado bastante aos jornalistas. “50 Anos a Mil”, a biografia editada pela Nova Fonteira é um calhamaço de 752 páginas. Jornalistas já fizeram o trabalho de comparar com o número de páginas de biografias de artistas como Bob Dilan, Eric Clapton, Keith Richards e Tom Waits. Pela ordem,cada um tem o seguinte número de páginas: 574 páginas; 400 páginas; 640 páginas; 640 páginas.

É óbvio que Lobão não tem mais coisas a dizer que essas quatro grandes estrelas do rock. Parece ter faltado uma boa edição que desse concisão ao livro, mas a culpa não é só do Lobão. O compositor escreveu com a ajuda do jornalista Cláudio Tognolli.

Mas sempre é bom ouvir alguém que altera a pasmaceira da discussão cultural no país. O melhor do Lobão é que ele quebra o espírito de patota que domina qualquer tipo de relação no Brasil e que é bastante forte até no rock. Vale aqui uma variação daquela máxima que, mesmo que não seja do próprio, ficou conhecida como frase do Tim Maia. No Brasil, prostituta se apaixona, traficante se vicia e cafetão se apaixona. Pode-se acrescentar que no Brasil roqueiro também é um cara bacana.

Lobão quebra isso a todo momento e é claro que acaba sendo tachado de louco. Aqui na terrinha, quando alguém começa a alterar a cumplicidade que mantém o status quo logo é estigmatizado de qualquer forma. Tentei lembrar de outra voz inconformista do rock brasileiro e não encontrei nenhuma outra que acompanhe Lobão nem nas críticas que ele faz e muito menos no tom. A moçada é bastante bem comportada.

O rock brasileiro não levanta a voz. Por isso Lobão é chamado de louco. Mesmo que seja uma contradição danada dizer que um roqueiro é louco. Se um Keith Richards, um Lou Reed, ou qualquer outro artista que deixou sua marca nesse tipo de música ouvisse algo do tipo é claro que agradeceria o elogio. Mas no Brasil não é assim. Nosso rock é bem comportado, num nível sempre muito próximo de idiotas como os da Blitz ou de qualquer outro grupo. Não vou citar mais. A lista é grande. Pensem em qualquer grupo de rock brasileiro, que ele pode estar numa lista dessas. Eles fazem rock, mas o espírito é de pagodeiro.

Gilberto Gil mostrou bem esse clima numa música onde busca fixar uma imagem de meninos a homens já muito bem criados e prontos inclusive para competir com ele. Esse tipo de coisa deixa enfezado o Lobão. E ele tem toda a razão.

Na música que lembrei, do Gil, tem trechos como este: "Outrora, só cabeludo, agora, o menino é tudo de novo no front". E por aí vai, com paternalismo e valorizando o bom comportamento numa área em que exatamente a quebra de padrões é que justifica a criação.

Mas os roqueiros aceitam bem esta contraditória regra social. O rock brasileiro amoleceu mesmo. É música para dançar em festinhas. Está aí o exemplo da Rita Lee, que sempre fez isso e até hoje, já indo para os 70 anos, fazendo o mesmo papel de menina traquinas.

Incomodando as patotas da música brasileira
O discurso de Lobão quebra esta regra do interesse de patotas e é por isso que ele tem dificuldade de encontrar espaço na música brasileira. Com esse comportamento não vai ser aceito nunca. Na música e ou na cultura brasileira é impossível a convivência com alguém assim, sempre disposto a falar verdades que desequilibram os esquemas muito bem determinados que premiam o bom comportamento com gordas verbas estatais e tratamento amigável nos cadernos culturais que viraram espaço de variedades e tratam a cultura num nível de BBB.

É claro que isso está matando a cultura brasileira, mas quem é que se importa com o estrago, quando o dinheiro está tilintando no caixa? E não é preciso talento criativo e senso crítico quando o jabá institucionalizado dá conta de abrir espaços para tocar no rádio, na TV e conseguir publicação em revistas, jornais e sites.

Lobão não é fácil e disso não dá pra ter dúvida alguma. Está sempre denunciando alguma coisa e com isso afeta diretamente o conformismo de muita gente, às vezes até do leitor. A defesa natural contra alguém assim é tachá-lo de louco.

Mas dá para ver que Lobão sabe muito bem do que está falando. E muito do que ele fala nem é grande novidade.O inédito é que alguém tenha coragem de apontar o que todos estão vendo, mas se calam.

E parte dessa admirável coragem de falar, abrindo a boca para criticar até em situações que podem prejudicá-lo diretamente, deve vir dar sua história pessoal muito difícil, barra pesada mesmo. Mas o que importa é que ele vai ao ponto certo.

Sobre a nova ministra da Cultura, a irmã de Chico Buarque, Ana Hollanda, ele diz: "Pior que Gil não vai ficar, porque era mamata federal". Ana Hollanda, por sinal, começou seu trabalho no ministério com uma demonstração de como a cultura no Brasil virou uma bajulação dos que têm a chave do cofre, seja no governo ou na iniciativa privada. Com menos de um mês no ministério ela procurou a presidente Dilma Rousseff para dar-lhe de presente um retrato feito por um pintor puxa-saco.

É do espírito de patota tratar bem quem está por cima. Assim como é do mesmo espírito tratar bastante mal aquele que traz críticas que podem desestabilizar o bom convívio com quem tem a chave do cofre.

O bom mocismo impera até quando o artista é roubado em seus direitos autorais. E foi nesse ponto que alguém como Lobão incomoda mais. Sua relação com as drogas, a vida bandida que ele levou, tudo isso acaba sendo tolerado pela indústria, mas aqui o negócio é grana. Rola bastante dinheiro na indústria e sempre aconteceram muitos desvios. Todo mundo sabe disso, mas as estrelas da música brasileira nunca tiveram o interesse de criar regras de defesa dos direitos dos artistas.

Quando tentou criar nos anos 80 uma associação de cobrança desses direitos, Lobão conta que alguns figurões da nossa música não gostaram da discussão criada com o assunto. A mulher de Gilberto Gil chegou a falar que Gil havia sido ameaçado pelo presidente da gravadora. A mulher do compositor baiano também foi agressiva com ele: “Você é um canalha, moleque, tá querendo acabar com a vida dos artistas”.

Ele fala até da existência de fábrica clandestina tocada por gente da própria indústria fonográfica. E situa a origem da indústria pirata de CDs nas próprias gravadoras. Os CDs que não eram vendidos deveriam ser destruídos, mas, em vez de fazer isso, profissionais das próprias gravadoras encaminhavam de forma clandestina o produto para a venda em camelôs. Com isso, criou-se um mercado pirata que depois foi tomado pelos chineses.

Os músicos sempre foram roubados pela indústria fonográfica. E foi nesse ponto que a discórdia de Lobão criou mais problemas. Ele foi um pioneiro da luta para que houvesse numeração dos discos no Brasil e para isso teve pouco apoio dos figurões da nossa música, inclusive de Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, que depois foi ocupar o ministério da Cultura de Lula.

Isso já parece bastante coisa, não? Mas Lobão tem muito mais histórias para contar, o que ele faz sem nenhuma trava na língua. Ele fala com franqueza até sobre o suicídio da mãe, pelo qual se sente culpado − "Ela deixou escrito!", ele diz. Fala também das drogas e do convívio com bandidos na prisão e nas favelas, onde viu gente sendo jogada viva no triturador de lixo e garoto jogando bola com cabeça humana.

Tem várias entrevistas desse cara impressionante à disposição na internet. Digitando "Lobão, entrevista" pode-se encontrar muita coisa interessante para ler. A melhor que vi até agora foi uma longa entrevista feita pelo site IG e que pode ser acessada por aqui.
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POR José Pires

3 comentários:

Fischer disse...

Quase comprei a biografia do Lobão há uns dois meses, no sebo da Maranhão. Mas achei muito caro. Acho que tava mais de 50 paus. Pô, parece que em sebo é mais caro que em livraria. Daí, comprei outros três que já havia selecionado, todos na faixa dos trintão: Os cinco maiores tiranos da humanidade (para mim), aquele de verbetes sobre Ipanema (para a Valéria Mortara) e outro sobre um famoso julgamento de vinhos (para meu sócio Fábio Cavazotti ler na viagem que ele começa a fazer hoje para o Japão), depois do qual sobressaíram os vinhos californianos. Gosto do Lobão, mas é incrível como a gente faz besteira quando não entende o contexto das coisas. Num show dele no Moringão, no final da década de 80, eu, bebaço, ao lado da Cris, minha namorada, comecei a chamar ele de filho da puta sem parar, alucinadamente, porque ele tocou o Hino Nacional na guitarra, e eu achava aquilo não uma heresia, mas algo chapa-branca que não ornava com ele, e ele deveria ter feito aquilo justamente pelo inverso do que eu pensava. A Cris até teve de me acalmar, porque eu tava a fim verdadeiramente de chegar no gargarejo e mandar ele enfiar aquele hino no rabo. Enfim, há coisas que a gente não capta na hora, e talvez o Lobão tevenha passado por vários momentos assim também, porque ninguém pe perfeito. E agora chega, que tenho de jogar bola no Vale do Rubi. Abraço, Jota, e bom domingo.

Fischer disse...

Ah, li a primeira parte da entrevista linkada, vou ler as outras três depois da pelada. De tão consistente, pensei, num primeiro momento, que poderia fazer eu desistir de ler o livro, mas acho que só vai me instigar ainda mais. Sabia de algumas mazelas dele, afinal sou anos 80 pra caralho, mas dos suicídios e das tentativas, não. Hard total.

Juliana disse...

O Lobão parece ter mais coragem do que as estrelas que se dizem politizadas, como Chico Buarque, Gil, Caetano e outros.