Certos elogios agridem bem mais do que críticas. Em encontro com o presidente Lula, o aiatolá Ali Khamenei elogiou o Brasil, dizendo que o nosso país é independente diante da "arrogância" dos Estados Unidos. "O Brasil adotou posturas independentes ao negociar com as políticas arrogantes dos Estados Unidos nos últimos anos", disse Khamenei, segundo a agência de notícias IRNA, a agência oficial do governo, pois lá não se usa o estranho método dos arrogantes dirigentes dos Estados Unidos de fazer uma entrevista coletiva com a imprensa para prestar contas do que está sendo conversado ou negociado.
Na foto do encontro entre Lula e Khamenei fica bem claro como funciona a teocracia iraniana. Num retrato oficial na parede, dominando a cena, está o aiatolá Kohmeini com a cara enfezada de sempre. A mensagem é clara: o poder é do clero e fim de papo.
E nada de olho no olho. Khamenei está situado numa posição superior, até numa poltrona especial, enquanto o visitante foi colocado em um sofá comum. É bem diferente, mas muito diferente mesmo do informalismo de Barack Obama e outros líderes ocidentais que tratam Lula ou qualquer outro governante como um igual. Lula está bastante inchado, a barriga esticando a camisa branca e levantando a gravata. Faz bem o papel de coadjuvante para o aiatolá atacar os Estados Unidos.
O petista está no Irã para ter um olho no olho com o presidente Ahmadinejad para convencê-lo a parar com esse negócio de querer fazer a bomba atômica. E não duvido que ele volte ao Brasil com algum fato sem nenhuma influência sobre o que virá a seguir na relação do Irã com as grandes potências, especialmente com os Estados Unidos, mas de muito proveito na campanha de sua candidata à presidente. O papel de estadista pode render bem na eleição.
Mas é pena que nesta viagem Lula não possa ter um olho no olho também com o aiatolá Sadegh Khalkahlli, uma das figuras mais importantes no estabelecimento das bases do regime dos aiatolás. É impossível agendar, companheiro. O cara morreu em 2003.
Khalkahlli era de Qom, a cidade sagrada dos xiitas. Foi um juiz implacável no nascedouro da teocracia islâmica iraniana, que eles chamam estranhamente de República Islâmica. Calcula-se que tenha encaminhado para a morte pela forca ou fuzilamento cerca de oito mil pessoas. Che Guevara e Fidel Castro são pinto perto do aiatolá, que foi contemporâneo da figura máxima da República Islâmica, Ruhollah Khomeini (1900-1989), e um de seus auxiliares mais poderosos até cair em desgraça e ser tirado de cena pelo regime.
O escritor V.S Naipaul relata um encontro com o aiatolá Khalkahlli em “Entre os Fiéis”, livro em que narra a experiência islâmica relacionada à política em quatro países — Irã, Paquistão, Malásia e Indonésia. O livro completa-se com outro de sua autoria, "Além da Fé".
São relatos sobre estes países, que visitou em 1979 e depois no final da década de 90. Os dois períodos se completam nos dois volumes, para contar o que viu da prática política e religiosa nesses lugares.
No caso do Irã o material ficou acima da média dos outros relatos, todos muito bons, porque no caso desse país a forma que Naipaul adotou acabou sendo mais ajudada pelo tempo. Esteve no Irã, como já disse, primeiro em 1979,ano da queda do Xá, para voltar depois em 1997 para ver como as coisas haviam andado o regime islâmico já estabelecido.
No primeiro livro, Naipaul narra o encontro com Khalkahlli. Enquanto o escritor percorria o Irã em 1979, o aiatolá havia dado uma entrevista ao jornal Tehran Times gabando-se de ter condenado a morte cerca de 400 pessoas em Teerã. Ele já estava temendo a perda de poder pessoal que de fato viria e tentava com isso manter o prestígio. Khalkahlli contava então que condenara “mais de quatrocentas pessoas”. Segundo ele disse, “em algumas noites grupos de trinta ou mais pessoas eram trazido em caminhões”. O Tribunal Revolucionário Islâmico em Teerã funcionava dia e noite.
Na entrevista citada por Naipaul, o aiatolá explica o método jurídico utilizado para dar conta de tanto trabalho. Sobre um caso específico de suposta conspiração, ele disse o seguinte: “Examinei todos os casos em uma úunica noite e mandei-os para a frente do pelotão de fuzilamento”.
Khalkahlli é um desses casos em que a gente lamenta que ele esteja errado na sua crença, pois o inferno estaria bem servido. No encontro com o escritor ele foi bastante otimista nos prognósticos sobre a duração do regime. Para ele, a República Islâmica teria dez mil anos. Pois nem chegou nos cinqüenta e já mostra sinais de esgotamento.
A descrição de Khalkhalli feita por Naipaul é ótima: “O aiatolá era branco, careca e muito baixo, um gnomo clerical, vestido com desleixo”.
O encontro teve uma lúgubre revelação. Khalkhalli contou que tinha ainda a arma que matou Amir Abbas Hoveyda, primeiro-ministro do Xá. A história do "julgamento" e execução de Hoveyda segue a lógica da justiça na Revolução Islâmica. Ele foi arrancado da cama e levado ao tribunal, acusado de “corrupção
na Terra” e de conduzir “uma batalha contra Deus”. Foi morto pelo filho de um famoso aiatolá.
O juiz foi o aiatolá Khalkhalli. Para Naipaul ele contou que ordenou a morte e depois pediu a um guarda revolucionário a arma que executou Hoveyda. Em 1979 ainda guardava com orgulho este estranho souvenir. Estará hoje em algum museu da história recente do Irã? Seria bom saber.
É do regime criado por este tipo de gente que Lula espera boa vontade. E para lá vai colher elogios baseados em desaforos contra a pátria de Washington, Lincoln, Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, Emerson, Samuel Addams, Tom Payne, Thoreau e tantos outras personalidades democráticas e de um brilho que ilumina até hoje a história humana.
Não é que valha como elogio, pelo absurdo da cena do aiatolá revelando o estranho objeto que guardou por anos, mas não consta que algum deles tenha guardado como troféu simbólico a arma que executou um prisioneiro político.
Enfim, cada revolução tem seus valores simbólicos. Que Lula assuma a vergonhosa subserviência que tem revelado perante a teocracia iraniana é um problema dele. O tempo se encarregará de mostrar seu erro. Mas esse tipo de elogio nós brasileiros não queremos não.
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POR José Pires
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