sexta-feira, 12 de março de 2010

Mataram o nosso moleque

Estávamos na sala dos desenhistas da Folha de S. Paulo em 1979 quando o Glauco apareceu com o ótimo cartum ao lado dizendo que tinham pedido para ele fazer o cartaz do Salão de Humor de Piracicaba daquele ano, mas que estava com dificuldade com a edição gráfica. Então fiz a programação visual do cartaz. As letras que formam a identificação do salão, em inglês e português, foram coladas uma a uma. Este era o único modo de montar um título com espaçamento correto naqueles tempos mais que pré-computador. Estavamos atrasados em tudo. Até na democracia.

A ditadura militar já capengava no Brasil, mas ainda não era fácil trabalhar na imprensa brasileira. O Salão de Humor de Piracicaba era um dos poucos espaços naqueles daqueles tempos de sufoco, um período muito difícil para a liberdade de opinião. Na Folha de S. Paulo as charges e cartuns sofriam uma cuidadosa auto-censura interna. Todos os jornais e revistas faziam isso.

O Salão de Piracicaba era também uma oportunidade de diversão, para encontrar os colegas numa situação de debate político e profissional, mas também da farra de beber na beira do rio Piracicaba e aprontar uns com os outros.

Nós cartunistas eramos todos moleques naquela época. Menos o Millôr Fernandes, é claro. Vejo aqui nesta notícia que bate na minha tela já de manhã que eu era até mais novo que o Glauco, que foi asssassinado na madrugada desta sexta-feira em São Paulo aos 53 anos. Mas o Glauco era certamente mais moleque que eu.

Era o mais moleque de todos, mas também sempre foi uma pessoa bastante gentil, incapaz de qualquer maldade com o próximo. E não quero que isso pareça discurso à beira da cova, mas foi até o fim um moleque atrevido. Seu comportamento brincalhão, sempre pregando peças nos colegas, tinha muito do cartunista Henfil, assim como seu traço simples e ligeiro.

Ele até morou com Henfil em São Paulo, quando o cartunista do Pasquim mudou-se para a capital paulista e resolveu juntar cartunistas da cidade em um trabalho coletivo junto ao movimento sindical. Cheguei a participar brevemente disso, mas caí fora logo que percebi que na realidade o grupo estava sendo usado por sindicalistas pelegos.

Fazia tempo que eu não via o Glauco. Para mim é novidade até essa notícia de que ele havia fundado uma igreja em São Paulo ligada ao tal do Santo Daime, algo que sempre vi com uma desconfiança que um crime desses só faz crescer.

No entanto, sempre foi perceptível nos trabalhos publicados pelo Glauco que esta função religiosa não amenizava em nada seu humor.

E para o cartum brasileiro sua grande contribuição foi a irreverência com que tratava qualquer assunto. Pode-se dizer que o Glauco trouxe um jogo de cintura comportamental e até no traço para os desenhistas de São Paulo.

Pensávamos então o cartum mais como uma ferramenta política. E ele veio com uma forma mais irreverente de lidar com o cartum, fazendo um humor anárquico até na crítica à ditatura militar. Nisso, não poupava o torturador e nem o torturado. Pode-se dizer que ele era anti-políticamente correto antes dessa palavra existir no Brasil.

Naquele final da década de 70 era bem divertido ir de ônibus da capital até Piracicaba. Apesar da ditadura, tudo era bem mais fácil. Com pouco dinheiro e até menos paciência para procurar um hotel, chegamos a dormir na praça para acordar inteiros no dia seguinte e participar dos eventos do Salão.

Hoje alguém dorme na praça em Piracicaba? Duvido, pois é bem grande o risco de não acordar vivo no dia seguinte. E hoje temos este paradoxo de viver em um país onde se tem o direito de ir e vir, mas desde que seja com carro blindado ou guarda-costas.

O crime que vitimou Glauco ainda precisa ser esclarecido, mas pelo que se sabe até agora é bem singular. Parece envolver religiosidade e loucura, dois elementos que quando se juntam sempre dá em degraça.

Mas para mim a morte do cartunista se insere neste padrão que faz da morte violenta uma banalidade neste país. Mata-se com facilidade demais no Brasil. Os últimos dados brasileiros são de 2006: 26,6 assassinatos por 100 mil. Em números atuais, no Rio de Janeiro a média é de 34,6 para cada grupo de 100 mil habitantes. É uma mortandade que todos fazem de conta que não estão vendo, até que a morte chegue perto.

Mataram o moleque do cartum. Que o assassinato do colega que levou quatro tiros, ele e seu filho, os dois mortos em um país onde todos vivem com medo, pelo menos sirva para uma profunda meditação sobre o alto grau de violência que tomou conta da vida brasileira.
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Por José Pires

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