Uma reação até engraçada que pode ser observada entre manifestações de contentamento de bolsonaristas com o que trouxe a gravação da reunião de 22 de abril é a tentativa de minimizar aquele espetáculo de desumanidade e grosseria usando a expressão “a montanha pariu um rato”. De fato, em tempos de pandemia, a expressão faz sentido. Eu só apontaria o aspecto plural do problema: na verdade a montanha pariu muitos ratos.
A reunião de governo dirigida por uma das figuras mais espantosamente estúpidas já surgidas na política brasileira, este inacreditável presidente da República que é Bolsonaro, seria inaceitável do ponto de vista institucional nem que fosse apenas pelo tom abjeto de conversa de boteco sórdido dominando o que deveria ser uma reunião de trabalho, pelo comportamento condenável de um grupo político — porque Bolsonaro é apenas isso: chefe de um grupo — que transforma o Palácio do Planalto em um ambiente dominado pela grosseria e o mandonismo mais lamentável que poderia ser assistido em uma democracia. Bolsonaro agride a própria institucionalidade do cargo, mas isso não surpreende em um autocrata destrambelhado.
É patente na reunião o total descompromisso com a vida dos brasileiros, ressaltado pela preocupação exclusiva de Bolsonaro com o interesse pessoal e da família, com um claro desprezo pelos compromissos institucionais. A condução do que deveria ser um encontro de trabalho é conduzido com o estilo de um “duce”. E não estou aqui situando Bolsonaro como um fascista, que lhe falta suporte doutrinário para isso, ainda que tenha revelado que, ao contrário do que dizia, sua obsessão pelo armamentismo não é para a proteção contra bandidos, mas para o uso no ataque a poderes legais. Espera-se que não esteja planejando fazer isso de forma paramilitar.
O governo Bolsonaro é conduzido na primeira pessoa, com uma abertura apenas para a própria família e “amigos”. O chefe tem até um “sistema particular” de informações, uma confissão que parece confirmar que está em andamento a “ABIN paralela”, denunciada pelo ex-ministro bolsonarista Gustavo Bebbiano, em entrevista ao programa Roda Viva em março, onze dias antes de morrer — também nesta entrevista, Bebbiano confirmou a existência de um gabinete do ódio, montado no Palácio do Planalto.
O tal gabinete, formado para espalhar desinformação, investigar a vida de adversários e atacar as pessoas, já havia sido denunciado por outra colaboradora próxima de Bolsonaro, a deputada Joice Hasselmann, hoje rompida com o presidente. A gravação desta reunião mostra que o ódio não se restringe a um gabinete: é uma política de governo.
O interessante da liberação desse retrato dos bastidores do governo é que as descobertas foram além do objetivo jurídico do material, de servir como prova do inquérito que apura se Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal. Quanto a isso, ficou tudo confirmado pelas palavras de Bolsonaro na reunião, além de que, do ponto de vista jurídico e político, a intenção de interferir já foi confirmada por ele em conversas com servidores e nas suas lives, além do objetivo ter sido confirmado por ações práticas, como transferências e demissões.
No entanto, o horror se sobrepõe aos crimes de responsabilidade quando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, levanta a necessidade do governo tirar proveito desse momento em que a população está focada no combate ao coronavírus e fazer avançar pautas de desregulamentação, como ele disse, “porque só fala de COVID, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”.
Este negócio de “ir passando a boiada” enquanto o povo está distraído já está estabelecido como política de governo. A pandemia entra de forma natural neste caso, mas desde que assumiu, Bolsonaro vem procurando desmontar leis e regulamentos do país de modo a facilitar a aplicação de propostas absurdas que desestruturam tecnicamente a máquina pública, alteram controles essenciais da economia e da defesa do patrimônio público, avançando de modo destrutivo sobre valores profissionais e de mercado, direitos de populações indígenas, da preservação do meio ambiente.
E que se cuide quem pensa que essas mudanças pretendidas estão focadas em um rearranjo mais apropriado das relações de trabalho, na desburocratização como forma de impulsionar o desenvolvimento seja no meio urbano ou no campo. Como se pode ver por esta reunião do dia 22 de abril, “ir passando a boiada” foi a única proposta prática em relação a uma pandemia que, no dia da reunião de 22 de abril registrava 2.906 mortes no Brasil. Apenas um mês depois, nesta sexta-feira, o número de mortes já chegou a 21.048, com pelo menos mil óbitos ocorrendo a cada dia.
Nessa política de ir “passando a boiada” o governo Bolsonaro cuida inclusive da criação de formas de impedir que a população se concentre no que realmente importa, desviando a atenção dos brasileiros com fake news e conflitos de araque, armados apenas para que não se perceba o maléfico projeto de poder que vai se instalando, com benefícios milionários para uma casta de privilegiados. Um exemplo do que vai passando com esta boiada é a abertura de cassinos no Brasil, que tem como articulador o senador Flavio Bolsonaro, que obviamente está fazendo isso a mando de seu pai e cujos lucros certamente também ficarão em família.
.........................
POR José Pires
Nenhum comentário:
Postar um comentário