domingo, 4 de março de 2018

Tônia Carrero, o adeus da estrela de um país descuidado com a cultura

Quando morre alguém como a atriz Tônia Carrero logo me vem à cabeça a preocupação sobre a quantidade de qualidade e experiência que está indo embora junto com esta pessoa tão especial. Quanta coisa não pode desaparecer com essa grande mulher? O Brasil sempre foi o país da descontinuidade, um lugar com dificuldade de aceitar que somos basicamente memória e sem a consciência de que é a partir dos rastros de quem criou e batalhou no passado que poderemos traçar passadas futuras. O passado serve inclusive como reforço para pisarmos em chão firme no presente, exatamente a firmeza que falta atualmente. E me parece claro que grande parte dos nossos problemas atuais vem desse impressionante desmerecimento da cultura, que tem o papel de religar o sentimento e a razão ao passado, pra gente saber afinal que rumo tomar na vida.

Tônia é uma das personalidades brasileiras que bem lá atrás deram bases a um projeto de nação, com a construção de uma cultura de tal força, que olhando bem, até surpreende que eles tenham produzido tanto em um país atrasado como o Brasil, com elites políticas e econômicas que nunca se deram bem com a ousadia e a criatividade. E pelo que fez neste ambiente árido a atriz é ainda mais admirável, em razão do fato dela ser mulher. Não era fácil encarar o moralismo cretino que tratava antigamente o teatro como uma atividade marginal e muito mal vista. Ela fundou sua companhia teatral em 1949, sendo responsável direta para que o Brasil tivesse também outro grande artista, o ator Paulo Autran, praticamente forçado por ela a largar a advocacia e se dedicar ao teatro. Dá para imaginar a batalha que esses artistas enfrentaram.

O ator Cecil Thiré, filho de Tônia, conta em uma entrevista de 2000 como era complicado antes dos anos 70 ter uma mãe que fazia este trabalho. Pelo fato da atriz ser muito bonita, Thiré vivia sendo perturbado pelos amigos com brincadeiras. “Cansei de ouvir comentários do tipo: 'Pô, tua mãe é gostosa!' Como naquele tempo as atrizes eram confundidas com putas, encarava como deboche, um modo de ofender”, ele disse. O ator não vive um grande drama psicológico por causa disso. Ele conta essas coisas sem ressentimento, até porque além de inteligente é também da área. Mas certamente não deve ter sido fácil. Isso resume bem o que uma atriz tinha que suportar naqueles tempos. Mostra a barra que a mãe dele teve que enfrentar para se impor. E como se impôs.

Tônia sempre foi um espetáculo. E não digo isso pela sua beleza. Como atriz ela possuía uma qualidade rara. A fotogenia. É privilégio de poucos e faz a diferença na superioridade de uma grande estrela sobre artistas que mesmo sendo muito bonitos podem não ter esta sintonia mágica com a câmera. Basta ver uma entrada de Tônia em cena, mesmo numa novela banal da Rede Globo, para notar que ela se enquadra na categoria ocupada por artistas como Marilyn Monroe, Marlon Brando, Marcelo Mastroianni, Sophia Loren e outros dessa minoria que se dava muito bem com a câmera. No teatro, onde a personalidade do ator é ainda mais definidora da qualidade da obra, esta é uma particularidade de muita influência no resultado final.

Mas o Brasil que se cuide. Podemos ficar com pouco do que essa grande atriz construiu em vida, desde sua primeira companhia, em 1949, passando pela Cia. Cinematográfica Vera Cruz, o Teatro Brasileiro de Comédia, a modernização da linguagem televisiva nas telenovelas brasileiras e, claro, no vigor que junto com sua geração ela deu ao teatro brasileiro. Na demolição da cultura brasileira que vem acontecendo nos últimos tempos, muita coisa já se perdeu, com um risco sério do país ser tomado por uma burrice irreversível. Na semana passada, o ator Antonio Fagundes, que está cartaz em São Paulo com a peça "Baixa Terapia", deu um grito de alerta em entrevista à Folha de S. Paulo, dizendo que “o teatro está morrendo”. Alguém parou para escutar? Espero que sim. Um país que não presta atenção a um sintoma tão grave como a destruição de sua cultura tem pouco a esperar de bom para seu futuro.
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POR José Pires

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Imagem- Tônia Carrero e Paulo Autran, em 1949, na peça 
“Um deus dormiu lá em casa”, de Guilherme Figueiredo

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