quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Evo Morales e seu Bolsa Coca

Mas a foto é ótima. O momento até parece arquitetado. Pelo governo da Bolívia, com certeza foi. Mas as providências posteriores da assessoria do presidente Lula, como o fato da própria Secretaria de Comunicação distribuir a imagem e disponibilizá-la no site da Presidência da República, tudo isso dá a impressão de um esforço também do governo brasileiro para ligar a imagem de Lula às folhas de coca. Ou foi uma distração?

De qualquer modo, é mais uma forte simbologia do que temos hoje no governo. Falta de senso, irresponsabilidade e uma extrema confusão entre o respeito às verdadeiras tradições e o que é pura empulhação ideológica.

Se para Evo Morales é bacana pendurar folhas de coca no pescoço, para Lula é um desastre. Cada demagogo tem seu Bolsa Família e a coca é o Bolsa Família do presidente boliviano. No caso, um Bolsa Coca. Com a promessa de aumentar o plantio e estimulando sua importância para a Bolívia é que ele conquistou o poder. Essa conversa também o ajuda a manter-se popular, sem precisar agir efetivamente pelo bem-estar de seu povo, mas apoiando-se nesta simbologia que é apenas uma demagogia para fortalecer sua imagem.

Já Lula só tem a perder com um colar desses no pescoço. Claro que isso nem sequer vai chegar ao eleitor nordestino que recebe Bolsa Família, mas tem um peso negativo para sua imagem internacional. A fotografia deve ter tido um efeito forte em dirigentes e formadores de opinião de várias partes do mundo.

Para o presidente Barack Obama com certeza não caiu bem. Pois é, este é o cara com um colar estranho. A foto deve ter ido parar na tela de seu computador logo depois de batida por Ricardo Stuckert, fotógrafo do presidente brasileiro.

Nos Estados Unidos eles dão importância à informação, um fator, aliás, muito significativo para que tenham alcançado o patamar poderoso em que estão. Não é só com poder militar que se obtêm hegemonia. Lá, por exemplo, eles não apagam nenhuma informação do controle das visitas à Casa Branca. E aqui, passado um mês já não se sabe quem entrou e saiu no Palácio do Planalto.

Mas, voltando à coca. Nós estamos em um mundo melhor simplesmente porque Obama não é o Bush. Sua presença na Casa Branca é um empecilho para aquelas velhas justificativas cujo único suporte era a retórica ideológica de ser contra o demônio ianque.

Os Estados Unidos mantêm a Bolívia fora da ATPDEA, sigla em inglês para Lei de Preferências Tarifárias Andinas e Erradicação de Drogas, um programa que oferece benefícios tarifários que poderiam ser de muita utilidade para o país mais pobre da América do Sul. Foi o presidente Bush quem determinou no ano passado a retirada da Bolívia, com a alegação de que o país não combatia as drogas.

Acontece que Obama manteve a decisão, afirmando que o “alto escalão do governo” incentiva a produção de coca, de onde se extrai a cocaína.

Durante a visita de Lula, Evo Morales foi claro sobre a ajuda financeira que espera do presidente brasileiro. “É um APTDEA sem nenhum condicionamento”, ele disse. E saíram os dois na foto com os colares de folhas de coca no pescoço. E Morales ainda gritou em outra língua desconhecida por Lula, o quéchua: "Viva a coca, morte aos ianques”. Mais um problema: o presidente ianque agora é outro cara. Ianque é o Obama, que Lula gostaria de ter como aliado.

Mas para Evo Morales tudo bem, ele só tem a ganhar com isso. E Lula? No seu caso, tudo isso não cheira bem. Aí o colar de coca pesa.

O Afeganistão produz quase todo o ópio do mundo e hoje é de extrema importância estratégica para a política externa de Obama. Mas o presidente norte-americano não colocaria no pescoço um colar de papoulas, de onde se extrai a droga, nem que a flor fizesse parte de tradições milenares dos afegãos. E olha que um colar de papoulas ficaria infinitamente mais bonito que aquela coisa de folhas de coca.

Evo Morales é cocaleiro e fez da atividade a mola impulsionadora da sua carreira política. Já disse: é sua Bolsa Família. Para tornar legítimo o apego simbólico às folhas da planta alega tradições populares e a utilidade da planta no cotidiano dos bolivianos.

E lá vem aquela história de que o boliviano masca coca para escapar aos rigores da vida. Não dos rigores naturais, mas de condições opressivas externas: a imposição do trabalho injusto e mal pago, a falta de alimento e de condições básicas de vida.

A coca é o estímulo do boliviano faminto do altiplano, do mineiro explorado secularmente, vivendo uma vida miserável e empurrado para ir catar todo dia a riqueza imensa do subsolo daquele país.

Esta coca que serve de combustível para subnutridos não é a do Chapare, onde Evo Morales fez sua base eleitoral e começou seu socialismo de araque. A folha de coca do Chapare não serve para mastigar. Tem efeito mais fraco e provoca lesões nas gengivas. Tanto que os habitantes de Chapare preferem a coca da região dos Yungas, no departamento de La Paz, bem longe dali, cerca 250 km.

Então para que serve a coca de Chapare se a folha não é boa para mastigar? Bem, para fabricar cocaína ele serve muito bem. Como escreveu na Folha de S. Paulo o jornalista Fabio Maisonnave, em uma excelente matéria sobre a visita de Lula ao colega boliviano, “a ausência da coca do Chapare no comércio local talvez seja a principal evidência de que o berço político do ex-cocaleiro Evo Morales é atualmente o epicentro da produção de cocaína da Bolívia”.

Mas fiquemos com o hábito de mastigação. Ora, se a folha da coca tem a função de enganar a fome, fazer o boliviano suportar o trabalho extenuante, enfim, de manter o pobre do boliviano sob o tacão de maus patrões e imerso numa miséria secular, então este vegetal é uma maldição que um governo decente teria a obrigação de fazer tudo para apagar da vida do país. Motivo de orgulho é que essa folha não pode ser.

Morales pensa o contrário. Recentemente ele até propôs que a coca fosse usada em uma campanha internacional simbolizando dignidade. Mas como é que algo usado para mitigar a fome e trabalhar sem se queixar em condições sub-humanas pode significar dignidade? Se for para pensar assim, talvez fosse o caso de usar então como símbolo o chicote. Pelo menos é uma imagem mais universal.

Mas se os bolivianos assim desejarem, o que fazer? Lá na casa deles, tudo bem. É óbvio que ninguém é contra o uso “tradicional” da planta. Que masquem a folha e façam seus chás na Bolívia. Não há problema algum, a não ser os decorrentes de seu uso por lá, entre eles o fato de que o hábito de mascar pode fazer com que a pessoa passe a se alimentar mal.

Mas a ONU afirma que a Bolívia aumentou a área de cultivo e da produção de cocaína. Não está ocorrendo, portanto, o prometido por Morales no início de seu governo, de tolerar o plantio da coca apenas para o uso "tradicional". A não ser que que esteja havendo um aumento vertiginoso do hábito de mascar folha na Bolívia.

Morales também pretende também exportar a folha, com o argumento calcado no uso tradicional na Bolívia. Mas existe uma diferença muito grande entre mascar coca no altiplano boliviano e um garoto fazendo o mesmo em uma cidade brasileira. Há o componente simbólico: este hábito pode acabar com a prevenção psicológica que todos temos contra a cocaína. Mascar a folha favorece o vício das drogas. Além disso, sendo exportada para outros países, quem garante que será apenas para fazer chá ou mascar?

Mas caso Morales consiga realmente dar um peso à exportação da folha de coca na balança comercial de seu país, até que o produto pode ter um bom uso na política assistencialista e eleitoral do governo Lula. Pode até fazer sentido adicionar no Bolsa Família uma folha que faz esquecer o cansaço e a fome.
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POR José Pires

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