quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Nem Michelângelo se salva

Esses religiosos que agora estão metidos na disputa eleitoral parecem estar ainda numa escala primitiva do próprio cristianismo. Bem, sobre as determinações autoritárias e reacionárias praticadas entres eles não há muito o que fazer. Mas o problema é que essas igrejas não escondem suas intenções de ditar regras também para os de fora, nós que vivemos em pecado, conforme eles pensam, permitindo que nossos filhos sejam tratados em conformidade com seus direitos, com uma sexualidade plena, e que até as mulheres façam o que bem entender de suas vidas.

Acho até essa polêmica sobre o aborto muito fora de propósito e não só porque estamos numa eleição em que assuntos muito mais importantes deveriam estar sendo discutidos. Esse papo é mais um daqueles desencavados pela esquerda e que acabam tomando espaço de questões não só mais urgentes, mas também fundamentais até para que se possa avançar na discussão do aborto e de outros problemas correlatos.

É parte dos riscos que a esquerda traz. Ocupados em contemplar setores minoritários, até para esconder o grave desvio programático que já vem de longe em seu partido, os petistas atiçaram lideranças religiosas que têm em vista muito mais que o combate a legalização do aborto. É parecido com o que eles vêm fazendo com os militares, num momento ainda delicado da democracia brasileira e com tantas outras questões que merecem muito mais atenção.

É provável que o PT se prejudique com esta polêmica do aborto, mas nem por isso eu posso deixar de criticar o comportamento de Marina e Serra frente ao posicionamento do radicalismo religioso nesta discussão. Serra parece mais cuidadoso, Marina nem tanto, mas ambos procuram conduzir o debate tendo em vista apenas o que isso pode proporcionar em matéria de votos.

Mas que ninguém espere bom senso e equilíbrio numa discussão dessas e muito menos que evangélicos como esses que Serra e Marina buscam seduzir estejam dispostos a um debate democrático sobre questões sociais que eles tratam como dogmas de suas doutrinas. E mesmo que haja prejuízos para o PT, este clima que está sendo criado com a conivência e até a cumplicidade da oposição pode trazer confusões ainda mais graves muito em breve.

Poderíamos até dizer que ninguém pode ser favorável ao aborto, argumentando como fazem os demagogos para fugir da responsabilidade sobre suas opiniões. Mas nem isso pode conduzir o debate a um rumo equilibrado, pois mesmo sendo verdade que o essencial é evitar que se façam abortos, também é verdadeiro que para isso é necessário o uso de métodos contraceptivos, o que é condenado por esses religiosos. Não esqueçamos que mesmo a Igreja Católica não aceita sequer o uso da camisinha.

Este é o xis da questão ou o ponto G, como diria Lula. Um debate como este sempre trava na questão da sexualidade, onde na verdade esses pastores querem chegar com esta conversa. Eu não penso que sexo seja apenas para procriar, até porque se seguisse essa regra teria hoje tal quantidade de filhos que poderia com eles fundar minha própria seita.

Enfim, é uma conversa longa e que exige uma ordenação impossível na correria de um final de primeiro turno. Nisso pelo menos Marina e Serra deveriam estar sendo mais responsáveis, evitando que assuntos políticos caiam no terreno das paixões religiosas. Mas os dois estão gostando do encaminhamento da discussão do aborto por esta via, pelo que isso pode dar de dissabores para a Dilma e de voto para eles.

Bem, concedendo agora tal poder para esses setores, mesmo que isso pareça ser momentâneo, a oposição dificilmente escapará dos compromissos políticos e morais sobre as consequências do fortalecimento de grupos que atuam de forma tão rigorosa e de um modo nada democrático não só nesta questão do aborto, mas também em outras áreas do comportamento humano, como a sexualidade, a cultura e a arte. Alguns desses pastores, é bom lembrar, não perdoam nem os nus pintados por Michelângelo na Capela Sistina.

A bem da verdade, devo repetir, esses líderes religiosos só não ditam regras rigorosas de comportamento para toda a sociedade porque são impedidos pela relativa secularização que conquistamos.
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POR José Pires

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