segunda-feira, 5 de abril de 2010

A malhação do bom senso


As cenas da malhação de Judas deste ano em São Paulo mostram bem como a violência está instalada no país como um estado mental. Entre os políticos de ocasião, esse ano Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá foram também escolhidos para personificarem o Judas.

A malhação de Judas sempre foi uma manifestação restrita ao local em que os bonecos eram destruídos pelos populares. Com a ampliação dos meios de comunicação, principalmente depois da internet, o que era uma simples bobagem de esquina acaba adquirindo expressão muito mais forte.

Hoje o espetáculo é encenado com uma preocupação em atender exigências circunstanciais da imprensa, especialmente da televisão. Se o casal não tivesse sido julgado recentemente, certamente não teriam suas caras nos bonecos que foram destruídos a pauladas.

Com um pouco mais de notoriedade, o assassino do cartunista Glauco poderia ter sido o escolhido. Ele ou qualquer outro criminoso ou até mesmo apenas suspeito, já que aqui o tal do transitado em julgado não tem a menor importância. O que interessa é que a pessoa figure num caso que a imprensa esteja em cima.

E só um país com as instituições também doentes permite algo assim. A grotesca encenação popular que nasce do espetáculo criado pela imprensa para posteriormente ser usado como imagem supostamente natural de um sentimento popular.

O descrédito com a Justiça está mesmo instalado no imaginário popular. E num país onde o desrespeito cívico se instala até mesmo com o estímulo público da nossa maior autoridade, é claro que basta juntar três numa rodinha para logo todos acharem que qualquer problema tem que ser resolvido no pau.

Mas o problema mesmo é quando este estado mental contagia instituições importantes como a imprensa. Aí é sinal de que o câncer não só não é benigno, como a metástase já se espalha de forma perigosa.

A malhação do Judas já é de origem uma manifestação de cunho preconceituoso. Já foi de fato racista, mas a violência simbólica acabou sendo desviada para os odiados de ocasião.

Mas os componentes de execração de personalidades públicas pioram ainda mais a elaboração de um espetáculo popular que, ao contrário do que pretensamente encena, violenta a Justiça e estimula o crime, caracterizado na atitude de vingança e morte violenta.

No aspecto simbólico, a malhação do Judas é até mais doentia e perniciosa socialmente que hábitos populares violentos como a Farra do Boi. No entanto a imprensa trata a malhação do Judas como algo inofensivo e pitoresco.

E não acho que seja correto ver dessa forma uma manifestação que envolve tamanha violência e que pretende transmitir uma visão de justiça. Mesmo que as pessoas envolvidas na ação atuem de forma irrefletida e irracional.

Dou um exemplo nesta imagem: se as crianças estivessem fingindo que fumam crack, certamente teriam uma faixa negra sobre os olhos. Então porque não recebem este mesmo tratamento uma imagem em que crianças encenam a morte violenta de seres trucidados à pauladas?

É que por ignorância de causas e conseqüências ou até pelo assunto não ser aprofundado em razão da pressa de publicação, o fato acaba sendo tratado como se fosse socialmente inofensivo. E não é.

As coberturas jornalísticas dão a impressão de que nas redações já não têm pessoas adultas. Para um país que parece que caiu numa imaturidade geral, uma imprensa assim só piora as coisas. A falta de senso crítico em casos como a malhação do pai e da madrasta da menina Isabella nos remetem inclusive à cobertura de outro espetáculo encenado às portas do Fórum de Santana, na capital paulista, onde os dois foram julgados há poucos dias.

Populares se juntaram na frente do Fórum, xingando e ameaçando familiares dos acusados e seus advogados. Da mesma forma, as coberturas jornalísticas incorreram na falta de rigor crítico ao noticiar estas manifestações, muitas delas feitas por malucos em busca de quinze minutos de fama, sem nenhum rigor crítico. As autoridades também deixaram de agir para coibir os abusos. E o que se viu ali foram atos de violência e intimidação.

Uma coisa é um maluco ou vários deles com fotos recortadas de revista nas mãos e suas frases difamatórias. Outra é a imprensa que dá voz a estes malucos. Ao jornalista é exigido responsabilidade na análise dos efeitos da informação que transmite com seu trabalho. O maluco é um problema da polícia e da Justiça. Mas infelizmente é uma prática corriqueira hoje em dia publicar qualquer besteira, meter as aspas, esquecendo-se que a responsabilidade social maior é sempre de quem colheu a besteira.

É óbvio que depois do tratamento que estes atos de incivilidade tiveram por parte da imprensa e das autoridades, o espetáculo grotesco e perigoso deve prosseguir à porta de outros julgamentos.

E na malhação de Judas deste ano o enredo seguiu, sem nenhum alteração dos que teriam a obrigação de serem mais responsáveis: a imprensa e autoridades.

O Brasil está com um problema muito grave: quem tem a obrigação de punir parece não ter coragem suficiente de agir. A covardia está instalada em nossas instituições. Seja por medo político ou pessoal, no Brasil o rigor da lei não é aplicado nem em chefes de quadrilhas já condenados e cumprindo pena.

Quem ameaça pessoas e até agride pessoas à frente de um tribunal, como ocorreu no julgamento dos Nardoni, deveria responder por seus atos. Deveria ser sempre assim, mas como isso não acontece os abusos vão aumentando. E aquelas pessoas chutando advogados não nos remetem aos manifestantes petistas chutando adovogados e empresários durante os leilões das privatizações no governo de Fernando Henrique Cardoso?

O sentimento é o mesmo, cada um com as devidas manipulações. Não à tôa, a malhação do Judas é usada também para casos políticos. A idéia de que o populacho é que sabe das coisas serve num caso para extravasar a miséria moral, no outro para ganhar votos e subir ao poder.

E é claro que este senso de Justiça de sarjeta não se ocupa sequer do fato em questão. A simbologia aqui só interpreta a culpa punida no olho por olho, dente por dente. A mensagem não permite um olhar objetivo. Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá foram julgados e condenados, até com penas bem extensas. Nunca estiveram foragidos. Compareceram perante o júri e foram reconduzidos à prisão.

Até no caso do ex-governador José Roberto Arruda, um político escolhido este ano para personificar o Judas, também há uma flagrante injustiça e desrespeito. As provas mostram que ele aprontou muito, mas Arruda se apresentou à Justiça, está preso e seu caso tem o devido andamento.

E se em nosso país não existe punição para político ladrão nem quando existe farta documentação do roubo ao dinheiro público, paciência. Paciência e equilíbrio, pois não dá para acreditar que a solução desse e de tantos outros problemas éticos vá surgir desse tipo de simbolização que prega a violência como punição.

Num país sério, os adultos que estiveram por detrás da malhação de Judas que desrespeitou tanto os pais de Isabela quanto o político teriam que ser identificados e processados. Como se pode ver na imagem acima e também aqui, muitas crianças participaram da malhação, aprendendo bem cedo esta terrível prática de fazer justiça com as próprias mãos. As fotos são do site G1.

O maior problema é que este tipo de cobertura sem rigor crítico algum chega à nossas casas, trazendo esta estranha forma de fazer justiça e sem fazer nenhum contraponto sério à tais barbaridades. Em um país onde de fato pessoas são mortas nas ruas a tiros e até com pauladas, mensagens desse tipo são tão perniciosas que até deveriam ser proibidas para menores.
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POR José Pires

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